Sob o céu estrelado, em uma clareira criada dias antes, o grupo de mulheres dançava de maneira desvairada em torno de um ídolo de metal enegrecido. Seus pés, em ritmo frenético, batiam contra o solo e riscavam em passos acelerados que seguiam o ritmo ouvido em suas mentes. Gritavam à plenos pulmões a canção que badalava persistente dentro de suas cabeças, dançavam até que seus corpos adormecessem de cansaço, entretanto permaneciam no mesmo ritmo, na mesma passada.
Distante dali a cidade permanecia em repouso, adormecida em tranquilidade silenciosa, quebrada apenas pelos cavalos e seus cascos no calçamento pedregoso. Casas simples contrastavam com o ambiente opulento de mansões mais antigas do que a própria cidade, construídas ainda no tempo em que o braço de escravos era a maior das forças disponíveis.
Os gritos daquelas mulheres não acordariam do sono nenhum dos habitantes da aparentemente pacífica cidade, distantes por demais através de uma barreira maior do que a física seria capaz de explicar. A dança e os gritos ecoavam pelo astral através de portas invisíveis e propagavam-se pelos confins do universo existente, além em milhares de anos-luz do mais audacioso e criativo pensamento mortal.
A ignorância humana não permite enxergar além de barreiras que nossa própria sanidade impõe. Seria um mecanismo de segurança a nos proteger contra um infinito de devassidão de perversidade existentes em um Universo frio, antigo e aterrador? Vozes que ecoam sempre são ouvidas. E no silêncio que preenche o vazio entre as estrelas, uma entidade odiosa e distante de qualquer concepção de moralidade era capaz de perceber cada súplica dirigida aos antigos deuses de eras esquecidas, apagados dos registros históricos por pura sensatez de sóbrios historiadores. Era o mensageiro da desordem e destruição, servindo entidades que se alimentavam do próprio tecido cósmico que compõe a realidade. E por algum motivo, doentio demais para caber em uma explicação com palavras conhecidas, se interessava diretamente por assuntos mundanos.
Sua aparência mais conhecida era temida desde tempos imemoriais, já fora chamado por muitos nomes, porém, entre cultistas das sombras, apenas O Descarnado já explicava o bastante.
***
As vozes perderam sua intensidade no mesmo instante em que o ídolo negro irrompeu em uma profusão de fluídos e restos de carne, assumindo a forma de um homem em estágios finais de inanição.
Toda energia da dança, cânticos e gritos em línguas que as próprias mulheres desconheciam, tinha ali seu propósito materializado na forma daquele homem de aspecto cadavérico. O olhar sem vida, vindo de olhos feitos de luzes de cores indefinidas, trazia todas as verdades conhecidas. Trazia poder, magia e, sobretudo, destruição.
Na brevidade de um instante, muito pode acontecer. Animais silenciaram, flores murcharam e os próprios astros perderam um pouco de seu costumeiro brilho.
Sem trocar nenhuma palavra, o Descarnado sabia qual das presentes havia guiado as outras para invoca-lo. Sentia pulsar a corrupção nas veias da mulher que conhecia as palavras para trazê-lo, enxergava claramente, tal qual um livro aberto, as páginas lidas pela cultista. Páginas estas que a levaram por um caminho tortuoso de danação sem medidas.
Mil olhos percorreram cada centímetro da região que separava a floresta da cidadela que dormia. A noite, outrora serena, foi entrecortada por pesadelos vívidos e alarmantes, que afligiam a todos sem distinção. Ricos ou pobres, jovem ou idoso. Esse era um dos efeitos mais brandos da chegada de tal entidade.
Ainda incrédulas e emudecidas pelo que viam e sentiam, as mulheres que se julgavam simples cultistas em busca de poder, dinheiro e juventude, se esforçavam para agarrar cada resquício de sanidade que escapava por cada fresta de seus corpos. Quando a teia de sanidade se rompe, os restos jamais se juntam. Algumas das presentes entraram em desespero choroso, outras se atiravam contra árvores, batendo suas cabeças em recusa ao que os olhos enxergavam.
O Descarnado, ainda que uma entidade cósmica e sem paralelos com emoções humanas, regozijava-se ante o turbilhão de emoções que sua presença evocava. Um olhar que se mantivesse fixo em sua face, sem pender para o desespero destruidor que a troca de olhares provocaria, seria capaz de notar um esboço de sorriso. Uma expressão cadavérica, assombrosa e alienígena, mas ainda assim envergando um sorriso.
Sem dizer uma palavra, fez com que sua magia profana fluísse através dos corpos das mulheres que cultuavam uma entidade existente além do tempo e do espaço. O Descarnado sempre encontrava aqueles dispostos a carregar sua palavra para dentro do manto que é a mortalidade carnal. A sacerdotisa que guiava o frenético culto era um destes indivíduos. Insana em seus desvarios de poder e imortalidade, ela prometia riqueza e juventude às senhoras de cabeças vazias e bolsos cheios que se juntassem em seu culto nas florestas. Sabia que não tinha controle nenhum sobre as palavras que proferia, todavia era a única maneira de deter os perturbadores pesadelos decorrentes e recorrentes da leitura do obsceno livro egípcio de sacerdotes perdidos na imensidão dos séculos.
Pelas palavras contidas no livro de Tot, a sacerdotisa encontrara uma entidade de poder sem medida. Pelas palavras contidas no livro dos pesadelos, escrito com o sangue de um faraó apagado da história, centenas de milhares iriam morrer.
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O Descarnado de Mil Faces
HorreurO horror... Um mal cósmico e invencível proveniente dos mais distantes rincões do universo frio e escuro. Alienígena, inconcebível e além da compreensão. Cercado de mistérios, deixa um rastro de destruição, morte e desespero por onde quer que passe...