Um ensaio sobre a memória

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"A vida é a coleção de nossas memórias, nossas ideias e feitos guardados dentro dessa caixinha minúscula que é nossa cabeça." Gustavo disse com firmeza enquanto apagava o cigarro no cinzeiro e colocava o dedo na própria têmpora para ilustrar melhor o que queria dizer: "A vida que vivemos no final, nada mais é que nossa memória, porém como tudo inerente ao humano, a memória é falha, modificável, então diante a isso como nós podemos afirmar que vivemos se não temos certeza?"

Em algum momento desse que era mais um de seus pontos monólogos, ele ficou mais animado, se levantou e continuou falando enquanto andava sem rumo pelo quarto "Como podemos saber que vivemos se não temos certeza? Se a única prova de nossa vida pode ser fabricada, como sabemos que estamos vivos? que vivemos tudo que vivemos? PIOR! Se não podemos confiar na nossa própria história, como podemos confiar em qualquer história? a história das civilizações, da arte, BIOGRAFIAS? Afinal tudo isso que citei são ideias do que pode ter sido, ideias de como as pessoas da época pensavam, ideias sobre quais sentimentos os artistas queriam passar em sua arte. Como podemos confiar nos outros se não podemos confiar em nós mesmos?"

Seu discurso era cheio de uma animosidade ímpar, ele balançava os braços como um homem indignado com aquilo que dizia, pisava forte no chão e andava em círculos ao redor de sua poltrona, e quando parou de falar -Possivelmente frustrado com ideias que orbitavam sua mente durante o monólogo- ele se sentou e agiu como se nunca tivesse tido aquela reação, com uma calma derivada da total indiferença sobre o pequeno show que ele deu. Novamente sentado em sua poltrona ele olhava pra mim como quem espera uma resposta e eu por minha vez respondi o que qualquer um no meu lugar teria respondido: "Meu velho, eu não lembro nem se eu comi ontem, mas o fato de eu não estar passando mal agora prova que eu comi."

Ele olhou pra mim com um olhar indignado e eu devolvi com um olhar que deixava clara minha satisfação em quebrar o clima profundo e filosófico que ele criou. Nós passamos alguns segundos nisso e então ele pegou seu copo de vinho, o levantou, fez um brinde ao vento e disse "Faz sentido, justo."

Assim voltamos a ficar em silêncio olhando o fogo consumir lentamente as fotos que ele tirou com a ex namorada, os presentes da época naquele momento já eram cinzas no fundo do balde.

O fogo lentamente queimava as fotos uma a uma porque o Gustavo achou que seria melhor colocar uma foto de cada vez para poder, segundo ele "saborear" o desligamento total entre ele e ela, mentira dele, a verdade era que ele estava se torturando, queimar as fotos estava sendo diferente de queimar os presentes que ele ganhou ou os itens que ele tinha comprado e lembravam ela, as fotos eram mais do que itens que mostravam os dois e seus momentos juntos, eles eram lembranças constantes daquilo que eles tiveram e como ele mesmo disse "a vida é memória", e por isso que a cada foto queimada eu sabia que algo nele queimava junto, pois conseguia ver no brilho que as labaredas faziam em seus olhos que algo mais estava ocorrendo por trás daquela máscara de indiferença que ele estava vestindo. Talvez ele estivesse tentando guardar a memória da queima das fotos tal como uma marca feita a ferro quente no seu cérebro, esperava se lembrar com tanta vivacidade daquele momento final, que qualquer outra memória sobre isso seria lentamente esquecida, e então por não lembrar de nada se não o fim, talvez nunca mais lembrasse que em algum momento sequer existiu um começo.

Já estávamos a mais de 20 minutos em silêncio olhando ele queimar as fotos quando eu decidi falar alguma coisa. Ainda olhando pra frente, sem tirar o contato visual com o fogo eu decidi finalmente dar minha opinião sobre o que ele tinha falado sobre a vida: "O seu showzinho claramente tem relação com o que estamos fazendo nesse momento, mais um dos seus amados monólogos cheios de pensamento profundo que escondem sua verdadeira crença sobre as coisas. Seu pequeno ataque." Repeti apontando para ele com a ponta do cigarro que eu estava fumando, mas ainda sem tirar os olhos do fogo " È só sua forma de dizer que talvez ela não te amava e que ela te largou não porque estava mal, mas sim porque cansou de você e agora você está aí tentando se convencer de que ficar VINTE FODENDO MINUTOS queimando foto por foto vai te marcar de tal forma que quando você dormir. Não, você fica quieto agora" Eu disse quando percebi pelo canto do olho que ele estava prestes a me interromper "Que quando você dormir, as memórias de vocês dois não venham como um soco bem dado no estomago e acabem com o pouco de energia que te sobrou, você só quer se convencer que não vai mais lembrar dela, pensar nela, mas no final eu e você sabemos como isso vai ser, já estivemos aqui antes e a gente sabe como vai acabar. Então pela primeira vez desde que eu conheci você, me fala, como você tá de verdade?"

Eu e Ele Onde histórias criam vida. Descubra agora