Por semanas depois que eu tive aquela conversa com o Gustavo, eu não conseguia parar de pensar em uma coisa: Ele fez todo aquele pensamento roubado de Descarte de forma subconsciente ou ele sabia que todo o discurso dele sobre a memória era uma forma de interpretação sobre o famoso “penso, logo existo”?
Sei lá, ele vive citando ideias alheias e falando elas com tanta convicção que até parece que ele quem criou a ideia, alguns dias depois de seu discurso sobre memória, teve uma pira dele sobre como Deus por poder ser absolutamente ruim, se tornava absolutamente bom. Em resumo ele dizia que Deus é tão acima de tudo que ele poderia destruir a gente e não o faz, e o ato de não fazer que tornava ele bom. Seria tipo a sensação de alívio quando um pneu desgovernado passa você de raspão, se tivesse te acertado era vala direto, mas acertou a senhora que estava andando na sua frente, então tá tudo bem, graças a deus que o pneu não te acertou. Ainda segundo ele, toda a arquitetura gotica das igrejas, as imagens te olhando de cima, te julgando sempre que você coloca o pé dentro de um templo católico é uma forma de violencia psicologica que reforça essa ideia de que deus é bom e te ama, porque ele está sempre te vendo la de cima, sempre te julgando, sempre acima de você, então quando você está ali se ajoelhando diante a Deus e na sua cabeça ele está te julgando e balançando a cabeça em reprovação, naquele momento onde você se sente insignificante e burro por ter pecado, quando você se sente absolutamente oprimido pela presença divina, é onde deus está te dizendo “olha aqui seu merda, voce só faz bosta, voce é um gasto desnecessario de recursos, porém eu te amo”, é quase uma relação toxica, deus só te maltrata, mas você ama ele porque ele em vez de te fuder de verdade, ele só te faz sentir oprimido com a reprovação dele. Adivinha minha surpresa quando eu li “O mito de Sísifo" de Albert Camus e percebi que todo esse discurso dele era uma visão dele sobre a relação homem/deus usando a ideia do absurdo de Camus.
Eu acordei e fui à Madureira. Sempre odiei aquele lugar, tanta gente andando igual formiga pra todo lugar e ainda tem aquela passarela que tem a capacidade de estar sempre engarrafada de tanta gente, eu lembro que uma vez eu fiquei naquela passarela por 2 horas. meu deus que lugar horrível. Enquanto atravessava a passarela, na verdade atravessando os trilhos do trem pra ir pro outro lado porque tem um buraco no muro, eu tive uma sensação de nostalgia sem motivo, uma sensação de que eu havia feito algo ali naquele caminho, que alguém do meu passado ia aparecer virando a próxima esquina ou estaria no meio daquela eterna multidão que madureira era. Por todo caminho até o mercadão eu senti essa sensação no fundo da minha cabeça, uma presença eternamente colada no fundo da minha consciência, uma sensação de que algo ou alguém ia aparecer, que eu reviveria alguma coisa ali naquele lugar ou que viveria algo novo com alguem antigo, um fantasma que me seguiu por todo caminho, me fazendo sentir obrigado a procurar o motivo de tal sensação, me fazendo buscar do fundo da minha memória quem teve um impacto tão presente na minha história que me fez sentir tudo isso.
A resposta veio rápida como um jab no meio da fuça porque assim que cheguei no mercadão eu vi quem era o indivíduo que me fez sentir essa emoção que trazia a sensação estranha, vi seus cabelos escuros e lisos, seu corpo magro, a falha quase invisível no cabelo bem no topo da cabeça e aquela postura ereta que ela sempre adotava. Eu vi ela por 3 segundos e ela sumiu no meio das pessoas enquanto eu fiquei ali olhando pra imagem que eu vi dela, como em um take longo de um filme gravado em 15 FPS. Felizmente uma alma caridosa me deu um empurrão e me mandou sair da frente, me tirando do meu transe.
“Não era ela, você tá pensando demais.” foi o que eu disse pra mim mesmo enquanto voltava a andar confuso pelo mercadão. Durante todo o caminho eu vi as memórias de nós dois juntos nesse mesmo lugar, ouvindo palavras soltas, conversas que tivermos, sentindo o cheiro dela em todo lugar que eu virasse, porém quanto mais eu tentava me provar de que não era ela, mais a presença dela naquele lugar se fazia presente, uma sensação estranha me tomou e eu me vi perdido no meio daquele mundo em movimento, algumas vezes eu via ela passando por mim como vulto no meio das outras pessoas, as vezes como uma voz no meio da multidão, um cheiro, ela estava em cada lugar que eu olhava.
Eu via ela em cada pessoa de cabelo liso escuro, em cada corpo magro, em cada voz minimamente semelhante a dela em meio a cacofonia da rua. A existência dela apareceu na minha memória, me fazendo senti como se tivessem aberto uma caixa cheia de lembranças e sentimentos reprimidos e jogado todo o conteúdo no chão da minha consciência.
Eu sabia que não era ela em nenhuma das pessoas que vi, inclusive na primeira que olhei, porém minha cabeça se negava a soltar dessa sensação, desse sentimento de que se talvez fosse ela eu poderia falar com ela, ou esbarrar nela, ela diria “oi” e continuaria a vida, talvez ela esbarraria em mim e não me notaria, diria “desculpa” sem prestar muita atenção e continuaria a vida, talvez eu diria pra ela “oi, quanto tempo” depois do esbarrão ou qualquer coisa assim, ela poderia me notar e ignorar, demonstrar desconforto por me ver e fugir da minha presença, ela poderia falar comigo de forma amigável e a gente iria comer algo no bobs que tem ali e conversaria sobre os 3 anos que a gente não se via, a gente poderia voltar a estar juntos mesmo depois de tantos anos, como se alguma mágica nos unisse novamente.
Eu continuei fazendo o que eu tinha que fazer, comprei o que tinha ido lá comprar -copos descartáveis fluorescentes- e fui embora com a presença onipresente dela orbitando minha cabeça, peguei o ônibus e no caminho passei na frente da sua casa, senti meu olhar ser atraído para sua rua e ela não estava lá, claro que não estaria, até onde sei ela poderia nem mesmo morar ali mais.
Eu só ia descer no ponto final então eu tentei me dar o luxo de dormir no ônibus, aquele tremor vibrando minha cabeça e o céu cinza do lado de fora queimando meus olhos tornaram cochilar quase impossível e eu me vi pensando em como a vida dela deve estar nesse momento, se ela encontrou outra pessoa, encontrou a felicidade, se ela lembrava de mim de forma positiva, se minha passagem por sua vida foi boa. Viajando nessas idéias confusas eu me perdi dentro de mim mesmo, mergulhado em lembranças e sentimentos sobre essa história que vive nos confins da minha mente e se nega a ir embora, aparecendo de forma aleatória só pra me mostrar que elas ainda existem e estão ali, esperando o momento pra ressurgir como um zumbi saindo debaixo da terra.
Eu passei a viagem vendo nós dois no fundo do ônibus abraçados, ela sorrindo pra mim enquanto eu contava uma piada boba ou fazia algum comentário inteligente que eu aprendi com o gustavo, em alguns momentos eu não via mais nós dois lá no fundo mas ainda sim ouvia nossas vozes, ela dizendo “a cara, fala sério" e me fazendo novamente sentir aquela sensação mista de medo e curiosidade que me ocorriam quando ela falava essa frase, porque eu nunca sabia se ela falava isso por estar bolada comigo ou com a situação. O medo com ela era constante, o medo dela perceber que eu era doente demais para estar com ela, ou que eu era muito estranho, que talvez eu fiz algo que deixou ela nervosa. Ela era o meu amor mas também era uma figura opressiva, eu tinha muito medo dela, dela me deixar, me odiar, se cansar de mim ou só ficar zangada com alguma coisa que eu fiz e desagradou ela, constantemente me sentia pisando em ovos.
Eu vivia na sombra dela que era uma mulher incrível, com tantas qualidades que seria impossível citar cada uma delas e vivia sob o olhar dela, que eu sabia que me julgava a cada cagada que eu fazia, que desaprovava 90% dos meus atos e que esperava o momento certo para mostrar que no final ela estava certa e falar "olha a merda que você arrumou", como da vez que eu fui arrumar briga com o cara errado e fiquei com a cara inchada por 2 semanas, ela estava lá comigo quando eu apanhei sozinho uma coça pra 5, ela me ajudou a levantar, xingou e tirou o cara de cima de mim, passou água e gelo no meu rosto, e pelos próximos 15 minutos depois de ver que eu estava completamente bem, me ofendeu de todas as formas possíveis, dizendo que eu só aprendia me fudendo, que foi bom eu ter tomado porrada porque era assim que eu ia tomar vergonha na cara e parar de arrumar confusão sem motivo, depois disse o quanto me amava, o quanto meu comportamento destrutivo preocupava ela e eu sorri sem tentar me defender das acusações, com a boca meio torta e inchada mas sorri, porque eu sabia que ela me amava.
Hoje em dia na maior parte do tempo eu esqueço da existência dela, de nós dois, é uma página da minha vida que eu virei e eu vivo bem com isso, pois eu sei que as coisas acabam e diferente do gustavo eu tenho a maturidade e a estabilidade emocional necessárias para entender que relacionamentos começam e acabam, já não me dói mais o peito lembrar dela.(Só as vezes)
Como eu odeio Madureira, tudo me lembra ela, mas pensando direito, ainda bem que lembra, porque a lembrança é a prova de que nosso amor um dia existiu, é a prova de que um dia eu fui feliz, de que fomos um. Sem a lembrança do que tivemos, nós não fomos nada.