"Inconsultável"
Sou professora de Língua Portuguesa há 20 anos. O que mais aprendi nesse tempo todo é que Sócrates tinha toda razão " Só sei que nada sei". Já ouviu aquele ditado popular batido "Casa de ferreiro, espeto de pau"? Pois é! Sabe aquelas histórias que você lê e jura que foram inventadas, que não é possível que aquilo tenha acontecido mesmo com alguém. Pois é, aconteceu comigo...
Foi no início da Pandemia no Brasil, março de 2019. Cidade parcialmente fechada e eu precisava dar um presente de aniversário para um querido amigo, que é chef e confeiteiro. Mas escolher um tema para presentear exige boa memória, o que me falta às vezes. É como preencher um álbum, desprezando as figurinhas repetidas. Então, procurei me lembrar de alguma conversa nossa, na qual ele tenha deixado uma pista sobre o que comprar.
Pensar, na Pandemia, trabalhando em home- office, é mais difícil do que pode parecer. Enquanto estava na cozinha, pensando e higienizando as compras do mercado para fazer o almoço, o interfone tocou. Era uma entrega. Durante o período pandêmico, não marcamos mais horário para receber nada e agradecemos de joelhos quando chega.
Precisei correr e colocar a máscara para buscar, porque o cachorro da vizinha, do apartamento colado ao meu, estava latindo com o barulho do interfone e iria arruinar completamente a aula do meu marido, que estava on-line com a turma da manhã, na sala de jantar. Na Pandemia, a divisória de um escritório de trabalho do outro é um "xiiiiu, estou em aula agora"!
Para piorar, o amigo em questão trabalhava comigo na escola. Por isso, quando eu pensava no aniversário dele, a minha cabeça fugia para o planejamento das provas on-line do mês. Ah, as provas on-line... é um tipo de pacto com os alunos. Eles juram que não colarão da internet para responder às perguntas e a gente finge que acredita. Portanto, preparar o exame exige do professor uma verdadeira pesquisa catalográfica ,dos primórdios até os dias de hoje, de tudo que já foi publicado na rede sobre aquela disciplina. Só então, é possível fazer uma questão "inconsultável". Mesmo sabendo que seria infinitamente mais útil gastar todo esse tempo dando aula para os alunos. O que me leva a outro ditado popular " Manda quem pode, obedece quem tem juízo".
E, quando a minha cabeça parecia um Maracanã cheio em dia de Fla X Flu, eu tive uma iluminação! Lembrei do dia exato, em que meu amigo tinha dito que queria comprar uma plataforma giratória para exibir os bolos de sua confeitaria. Bingo!
Agora, era só descobrir qual loja fazia entregas. Corri no celular e encontrei uma que costumava até frequentar. Os vendedores eram simpáticos e muito solícitos. Eu já conhecia todos os corredores e ficaria fácil fazer a encomenda...
__ Alô, é da loja de artigos de confeitaria?
__ Sim. Pode falar.
__ Por favor, eu gostaria de fazer uma encomenda. Vocês fazem entregas?
__ Sim, fazemos.
__ Eu quero presentear um amigo confeiteiro com uma plataforma giratória para bolos. Você tem?
Normalmente, ao fazermos uma pergunta, a resposta esperada é sim ou não, mas não dessa vez...
__ Eu tenho uma bailarina. Respondeu a vendedora da loja.
Do outro lado da linha, eu parei, pensei na bailarina e disse:
__ Uma bailarina, não sei se é exatamente o que seria um presente interessante para ele. Ela serve para enfeitar bolos?
A mulher, tentando ajudar, devolveu:
__ Sim, muito decorativa. Serve para enfeitar os bolos. É o sonho de todo confeiteiro!
__ Eu ouvi aquilo incrédula! Não conseguia imaginar o meu amigo, crescidinho, feliz com uma bailarina enfeitando um bolo seu. Mas a vendedora falou com uma convicção , que quase me convenceu! Porém, eu ainda tinha dúvidas...
__ Senhora, essa bailarina é de cristal?
__ Não, é de vidro mesmo.
Eu já comecei a achar que uma bailarina de vidro não ficaria tão glamurosa no topo do bolo. A mulher devia estar exagerando para vender a peça. Mas continuei o meu interrogatório...
__ Essa bailarina tem algo de diferente?
__ Sim, ela gira.
Diante da resposta, eu fiquei imaginando uma bailarina de vidro, made in China, estilo noiva do boneco assassino, que se movia e comecei a achar original o presente. Então, perguntei:
__ E, como é que eu faço quando eu quiser que a bailarina pare?
__ É só colocar o dedo, que ela para.
Nessa hora, eu pensei que uma bailarina de vidro, que se mexia sozinha e parava com o dedo era a coisa mais escalafobética que eu já tinha visto. Mas se era o sonho de todo confeiteiro, seria o presente ideal, muito melhor do que a bandeja giratória que era a minha primeira opção de presente!
__ Então, fechei a compra e pedi para entregar no endereço combinado, a casa do meu amigo.
Continuei o dia, fui almoçar e à noite, tocou o telefone. Era o meu amigo, agradecendo o presente...
__ Alô, Aline?
Eu atendi, o felicitei e perguntei se ele tinha gostado do presente, que poderia trocar, se quisesse. Mas ele respondeu de pronto...
__ Imagina! Eu sempre quis uma bandeja giratória para os bolos.
E eu respondi:
__ Não! Entregaram errado! Eu comprei uma bailarina de vidro para você. A moça da loja disse que era o sonho de todo confeiteiro. Ela disse que ela gira sozinha, mas para com o dedo e você pode usar para enfeitar os bolos. Pode ir lá trocar!
Meu amigo fez uma pausa e começou a gargalhar muito... Então ele resolveu um enigma na minha cabeça, que não era para ser exatamente um teorema de Pitágoras...
__ Aline, a plataforma giratória se chama "Bailarina"!
E, de repente, eu fui invadida por duas certezas. A primeira era de que o presente do próximo ano mudaria de tema. Artigos gastronômicos nunca mais. A segunda era sobre as provas on-line. Eu deveria Inserir uma questão sobre a "Bailarina", enquanto homônimo homófono. Aquelas palavras com som e grafia iguais, mas significados diferentes. Essa questão seria"Inconsultável"!
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Ideias crônicas. Deixa que eu te conto
FantasyUm livro de contos e crônicas para refletir e rir da nossa frágil condição humana. Parafraseando René Descartes, Penso, logo erro. Portanto, escrevo. Se você se identificar, vai ler. Se não, isso foi um erro e eu terei que continuar a escreve...