Voo livre
Aline de Moraes
Reunião de chá de panela. A noiva, Clara, já nasceu Eva, carregando todos os pecados do mundo, como toda mulher é criada. Quando criança, diziam que era adorável, porque não falava palavrão e sentava de perninhas cruzadas. Na adolescência, era "moça para casar" e agora, aos 35anos, era o comentário da família, ficaria para titia.
Mas, tudo mudou quando conheceu Ricardo. Namoraram algum tempo, até que ele a pediu em casamento.Tudo que Clara queria Ricardo tornava realidade. Viajavam todo fim de semana e se orgulhavam de não ter segredos um para o outro, nem a senha do celular! Depois de alguns meses, os preparativos do casamento começaram. A moça respondia com diferentes sons monotônicos, parecia um bordão " aham, claro que sim!
Maio trouxe o dia do primeiro ensaio de casamento. Clara foi mostrar o vestido a Ricardo. Mas ele a segurou, juntando os dois braços, envolvendo a cintura dela, dizendo que nunca a tinha visto tão linda, porém era inapropriado, muito decotado! Assim, todos os amigos dele reparariam nela. De repente, ela se sentiu nua, vestindo apenas aquelas palavras do noivo. No entanto, assentiu, poderia se trocar.
No ensaio, no clube reservado com grande antecedência, uma mistura de vozes e gargalhadas, algumas conhecidas, outras, não. Tudo tinha acontecido tão rápido, que a moça nem conhecia direito toda a família do noivo. No meio do salão, de súbito, sentiu um abraço da sogra, dizendo "meus queridos, esta é Clara, minha futura nora, um encanto de pessoa e uma "mulher do lar".
Uma tempestade encobriu o cenário de Love Story. Aquela expressão não passou impunimente. "Do lar"? Clara morava sozinha e adorava nos restaurantes do bairro e crepioca na janta, depois do trabalho. Faxinava a casa irritada e com música alta para abstrair! Tinha até uma playlist da faxina. Era muito feliz assim, obrigada!
O clima muda, assim que uma música toma conta do salão, o Dj toca " My all", do John Legend, a música do casal, que ensaia a dança dos noivos do dia do casamento. Depois, sentado em uma cadeira, o noivo se refresca, repetidas vezes, com uma bebida. Um filme começa a passar na cabeça da moça. O primeiro beijo, o primeiro encontro, o pedido romântico de noivado. Mas, como um disco arranhado no meio da música predileta, Clara estaca quando Ricardo, com a cabeça cheia de bolhas de champanhe, grita " esperem para ver o time de futebol que teremos daqui a dois anos!
— Dois anos? Ela pensa. É o tempo da bolsa de doutorado em Portugal. Ele sabia, concordou, fizemos planos e filhos não estavam neles! Quando iria me contar?
Era um circo formado, um circo dos horrores e ela se viu presa numa gaiola de ouro, presa como a mulher barbada. Os gritos ecoavam em sua cabeça. Finalmente, a voz dela podia ser ouvida. Mesmo no silêncio, ela podia se escutar.
Por algum acaso, alguém lhe perguntou se queria ser Eva, Frida Khalo ou a Bela, que tal a Fera? Se um dia já fora Bela, agora, um híbrido tomava conta de seu ser. Podia se ver no espelho e pelo reflexo, uma ferida na perna do mundo. Felicidade plena, realização através de uma relação era só uma ideia toda azul. E, como se a bailarina pulasse da caixa de música, bem no meio do rodopio, Clara deixou o salão, cancelando padre, igreja, rotina, time de futebol, sogra e união.
Certamente, todos diriam que ficou louca! Ah, essa simples ideia a fazia sorrir sozinha. Bruxa, fada, puta, louca, descontrolada. Quantos são os nomes da categorização, submissão padronização, perfeição truculência, agressão? Agressão contra mulher, o novo nome de tantas mulheres batizadas no jornal.
Clara, Clara, Clara, seu nome ecoava dentro dela, como se acabasse de ser registrada em cartório.Tomou café tantos anos com a expectativa alheia, que mal se lembrava da própria identidade. Quem era aquela mulher? Seria feliz naquela vocação de maternidade inventada ou ao lado de um homem com a crença de que quando uma mulher se casa vem com um tipo de chip instalado para lavar, cozinhar, passar e arrumar?
A verdade é que, ao abrir a porta da gaiola reluzente, descobria a dor e a delícia de ser mulher, de ser todas e nenhuma. Aprendeu a dizer não, como rito de passagem. "Não, não vou beijar o sapo príncipe ou o príncipe sapo. Não, não quero. Não, não permito. Por que é tão difícil? Será que o feitiço das bruxas, queimado na fogueira, era o "não" conjurado? O não seria o adversário à altura da corrida desenfreada por cirurgias de "lipoperfeição"?
Lembrou-se que mal tirava a roupa na praia, tinha vergonha do corpo e como no último verão engordou alguns quilos, Ricardo tinha dado a ela um maiô lindo! Como ela o odiava, o maiô, é claro! Comprar um biquíni, sim, era uma coisa que, agora, precisava fazer.
Puxa! Que prazer teria ao devolver as toalhas bordadas pela sogra para as mesas da casa, nem pode escolher a decoração! E, as colchas bordadas para a cama do casal? Estava decidido! Devolveria e compraria outra cama de casal, só pra ela e com molas ensacadas, a mesma deixada na loja no dia em que foram escolhê-la e o sapo- príncipe pediu que o deixasse escolher, porque mulher não entendia nada daquilo. Ora, desde quando coluna precisa ser especialista em ortopedia para saber onde quer deitar?
Fez sinal para o primeiro táxi que passou. Ainda com o vestido da festa, rodado e discreto, entrou num shopping. Comprou uma rasteirinha, jogou na lata do lixo o sapato elegante, provou um batom, roxo! O noivo dizia que parecia vulgar. E as roupas? Precisava de um novo armário...
Adeus, cores básicas e sapatos altos. Olá, sapatilhas! Quantas vezes ouviu que parecia muito baixa com elas. Será que ainda tinha uma saia no armário? Lembrava da velha saia lápis, mas nenhuma que mostrasse acima do joelhos.
Encontrar os fios do novelo que a levariam para fora do labirinto do minotauro não seria tarefa fácil, mas a viagem valia o passeio. Entre as vitrines do shopping, podia se reconhecer no reflexo dos espelhos das cabines. Dançava uma música com ritmo próprio. Sambou sozinha, dentro da cabine do provador, diante do espelho.
Sentia-se dona de si e ao sair da loja, pegou o caminho mais longo, pela praia. Andou com a cadência que Ricardo sempre reprovava. Mulher objeto? Nunca! Dona do próprio objeto, do seu rebolado, seu objeto, suas regras!
Ali, naquele momento em que se perdia enquanto se encontrava, brincava livre, vestida de ser tudo que quisesse ser. Na cabeça, ecos de Marina Colasanti. A felicidade é guardada por doze Reis, porque o Labirinto é de vento.
O futuro de Clara? Só ela sabe, mas posso dizer, que descobriu, finalmente, que o calendário ia lhe deixando afiada nos jogos, nas tramas do destino. Quanto mais ela passava pelo tempo e lembrava das escolhas do passado, sua paixão pela vida ficava cada vez mais Clara.
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Ideias crônicas. Deixa que eu te conto
FantasiUm livro de contos e crônicas para refletir e rir da nossa frágil condição humana. Parafraseando René Descartes, Penso, logo erro. Portanto, escrevo. Se você se identificar, vai ler. Se não, isso foi um erro e eu terei que continuar a escreve...