Cenas cortadas

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Cenas cortadas

Zaira, moça de seus trinta e poucos anos. Mulher de estatura alta e sorriso tímido. Morava sozinha, preferia as roupas confortáveis e era atenta a tudo ao seu redor. Tinha os olhos cravados no mundo, a cabeça no coração das gentes e o coração no seu próprio mundo inventado, onde doía menos ser quem era. Nunca escolheu nada, filha única, herdou o negócio da família, a Floricultura "Flor de Cuidado", deixada pela mãe, Dona Olga, antes de morrer. A matriarca escolhera o nome da filha. Tinha origem árabe, Zahare, "flor", interpretado como "florida".

Zaira adorava garimpar sonhos. Depois, os esquecia amassados na gaveta. Criar histórias era um grande passatempo. Fazia isso isso no ônibus, entre passageiros que subiam e desciam. Cada vez que um deles ficava para trás, ela olhava pela janela. Imaginava um destino, um desfecho na narrativa daquele personagem. Tanto que o seu hobby predileto era fazer isso no trabalho.

Como gostava de narrativas, enxergava nas flores uma combinação perfeita de incógnita de perfumes, cores, cenas e cenários. No seu universo, as flores diziam muito sobre as pessoas e ela gastava horas em pensamentos desalinhados, cheios de imaginação.

Como daquela vez em que entrou um senhor bem vestido, mas com a fronte enrugada, semblante tenso. Ele pediu as flores mais bonitas que a loja tivesse. Isso era música para os ouvidos da moça. Imediatamente, começou a ler os sinais.

Respondeu com a boca, enquanto a história já ganhava vida em sua mente. Aquele senhor preocupado parecia alguém que tinha dito a coisa errada, na hora errada, para pessoa errada. De certo, não tinha feito boa figura com o namorado ou a namorada, com o marido ou a esposa e precisava impressionar. Sabia que as rosas eram sempre uma aposta muito alta! Por isso, indicou o buquê de rosas vermelhas. Alguns sorrisos gentis depois, o cliente saiu satisfeito, com as pisadas bem mais leves do que quando entrou. Era fato. As histórias de Zaira sempre ajudavam a fazer vendas certeiras. O segredo estava em ler as entrelinhas do que não era dito.

Às 20h, ela fechava a floricultura e ficava lá dentro, fazendo o livro-caixa até às 21h. Depois, abaixava as gastas portas de ferro e passava os trincos que davam uma falsa sensação de divisória entre a insegurança e a paz na movimentada Copacabana, no coração selvagem do Rio de Janeiro.

A expectativa era voltar para casa, comer um congelado. E, com sorte, teriam lançado mais um capítulo da sua série predileta. O sono a vencia no avançar das horas, quando até a última estrela já tinha se retirado do céu. Já de manhã, a claridade despertava mais um dia. Esse um pouco cinzento, daqueles em que o mau humor precede o café. Teria que lembrar de carregar um guarda-chuva. Caía um temporal do lado de fora. Isso a irritava, detestava carregá-los. Já havia perdido tantos! Sempre os esquecia dentro de alguma condução.

Bom, o fato é que Zaira sobreviveu à chuva e ao bueiro entupido que alagou a entrada da loja. Começou o expediente. Logo, entrou a primeira cliente. Essa queria flores para alegrar o ambiente. Tinha um sorriso fresco no rosto.

Uma narrativa ganhava corpo na mente fértil da florista. Pensou que flores alegres podem enfeitar uma casa nova, mudança recente. Talvez, uma separação recente. Daí, o frescor! Quem sabe esteja redecorando para que o tempo testemunhe novos ares. Indicou, então, as flores do campo, que significam energia, felicidade e vitalidade. Tinham tons de lilás, amarelo, rosa e branco, adornados pelos caules em verde- claro. A cliente adorou a sugestão. Saiu contente com o ramalhete salpicado de cores que pareciam saltar de um quadro de Monet.

E assim era a rotina na loja. As portas brancas de vitral, com um sino delicado no batente, coreografavam entradas e saídas, enquanto o relógio perdia tempo. À noite, depois de fechar, mais uma checagem de tudo e o retorno pra casa. Mas, naquela noite, o guarda-chuva ficou esquecido ao lado da cadeira, dentro da recepção, junto ao casaco que deixava pendurado.  Voltou apressada, ignorando os obstáculos do caminho, se esquivando da chuva. Foi tirando as trancas...

De repente, sentiu outra respiração, olhou para trás e, no escuro, viu um homem atrás dela. Deixou um grito no ar, ignorado pela rua já deserta e pouco iluminada. Não conseguiu ver quem era. Mas os gritos afastaram um vulto que correu em direção ao poste de luz. Escapara de um assalto! Ela pensou. Berrou para que fosse ouvida por qualquer cidadão atento, na cidade que já foi maravilhosa. O coração da moça saltava de tanta adrenalina! Passado o susto, ainda trêmula, voltou para casa. 

No dia seguinte, Tomou um pingado com pressa, porque dormiu mais do que a cama. De volta a Copacabana, abriu a floricultura em meio a um dia frio de agosto. Nuvens fechadas, porém sem chuva. O movimento seria fraco. Ninguém sai para comprar flores no frio, ela já sabia. No entanto, algumas horas depois, a quietude  foi interrompida. Entrou um homem, meia-idade, rosto triste. Pediu flores brancas, sem muita conversa. A moça entendeu logo...

Quem entra em uma floricultura triste? Zaira não gostava das brancas. Normalmente, são dedicadas aos corações enlutados. Significam paz, harmonia, pureza e calma. Sempre achou triste vendê-las. Significavam a história interrompida de alguém. Entregou uma braçada de lírios ao senhor, com um sorriso silencioso que traduzia seu pesar.

Enquanto se despedia do cliente triste, o sino da porta tocou novamente. Novo cliente. Mas esse usava um perfume levemente amadeirado, semblante intrigante. Não sorria, não parecia triste ou preocupado. Só um pouco tímido. Perguntou se a loja tinha girassóis. A moça se esforçou para inventar uma história, onde os girassóis se encaixassem. Mas teve um bloqueio criativo. Girassóis são democráticos. Podem ser cordiais, apaixonados, fraternos, gratos, arrependidos. A cabeça se agitava, caminhando em hipóteses.

O fato é que o ramalhete foi entregue ao rapaz  e a vendedora disfarçou a frustração de não ter conseguido imaginar um cenário para os girassóis. O homem saiu, agradecendo com um sorriso no canto da boca. 

O dia se arrastou, garoando uma chuva fina. Na hora de fechar a loja, cuidado redobrado pra não sofrer nova tentativa de assalto. Mas ao cruzar o batente, alguém esperava do lado de fora. Era um homem sorridente, o rapaz dos girassóis. De certo, queria trocá-los. Assim que o viu, disparou a frase de praxe "senhor, sinto muito. A loja já está fechada".

Mas o jovem a interrompeu, dizendo que ele era quem sentia muito. Não teve a intenção de assustá-la na noite anterior. Disse que a viu, fazendo força para abrir a porta de ferro e tentou ajudá-la, mas se afastou quando percebeu que a moça pensou se tratar de um assalto. Em seguida, estendeu a mão que segurava as flores, oferecendo os girassóis para se desculpar.

Zaira mal acreditou, não tinha conseguido imaginar a própria história. Logo ela, que inventava tantos enredos... Riram junto de tudo aquilo, jantando no bistrô do bairro. Ela sugeriu os pratos. Passaria a escolher mais, agora que era roteirista da própria história. No íntimo, florida a convicção de que a vida é mesmo um filme de cenas cortadas, prontas para acontecer.

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Ideias crônicas. Deixa que eu te contoOnde histórias criam vida. Descubra agora