É dose!

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É dose!

Era uma quarta-feira qualquer de um tempo nada comum. Tempo em que abraçar, tocar e confraternizar se tornaram riscos. E se aquela máxima que diz "errar é humano" tiver razão, nunca fomos tão humanos! Mas, voltando àquele dia. Era quarta-feira de sol. Um daqueles manhãs que Flávio Venturini cantou " Sol de Primavera abre a janela do meu peito..."

São dias em que queremos ir à praia, fazer um passeio ou apenas ir para o trabalho, pensando no fim de semana e sentindo o vento no rosto. Mas não naquele dia... Nesses tempos estranhos, não existe nada melhor do que um dia lindo para admirar na fila das doses de reforço da COVID-19. Sim, porque imagine encarar uma fila quilométrica debaixo de chuva. Subir a máscara que parece obedecer apenas a Lei da Gravidade, escorrendo pelo rosto e equilibrar um guarda-chuva é algo que requer certa destreza. Eu sempre fui muito atrapalhada, por isso festejei o dia ensolarado.

Depois do café, tomei banho e comecei os preparativos. Agora, sair de casa exige logística. Uma mega operação que inclui separar a máscara, uma roupa sem manga para facilitar a aplicação rápida da vacina, forrar o cesto de roupa suja com plástico para receber a roupa contaminada da volta, separar o álcool gel portátil para higienizar as mãos e o "sapato de rua", aquele que sempre usamos para sair e deixamos do lado de fora, ao retornar para casa. Ufa! Minha logística também não é boa. Durante a Pandemia, já me peguei calçando o sapato de rua dentro de casa ou entrei no banho e coloquei shampoo no cabelo ainda usando a máscara. É um clássico do meu repertório.

Depois da maratona, prova cumprida! Finalmente, saí de casa, entrei no elevador, devidamente mascarada e abri o portão. Depois, dei uma bela borrifada de álcool gel nas mãos e saí. Veio aquela gostosa sensação de que a vida continuava do lado de fora das quatro paredes do apartamento. O sol, o vento, as flores, os passarinhos. Tudo estava igualzinho. As pessoas também, continuam bem... humanas. Muitas pareciam desconhecer o vírus que já deixou um número de vítimas de seis dígitos no Brasil e no mundo.

O desafio continua... Desviar levemente das pessoas que não usam máscara é um tarefa equivalente àqueles jogos de corrida dos video-games. No meio da pista, com o carro em movimento, surge um obstáculo do nada! Depois de andar uns trezentos metros, cheguei ao posto de vacinação.

Considerando que eram 6 horas da manhã e o posto abriria às 9 horas, eu estava super adiantada. 10 em logística para mim, certo? Errado! Algumas pessoas chegaram às 5 horas da manhã. Isso porque, na véspera, o Prefeito da Cidade, em um surto de dono de loja de departamento em dia de Black Friday, anunciou no site oficial da prefeitura" As vacinas serão aplicadas enquanto durar o estoque". O resultado disso foi uma fila gigantesca, com gente segurando pequenas cadeiras de praia e vendedores ambulantes de vaga na fila. "Pode chegar, se me oferecer 200 conto, eu dou meu lugar". Um homem anunciava lá do meio daquilo que veio a ser só o início da fila.

Conforme as horas passavam, cada pessoa que se somava à fila era acompanhada do olhar de piedade de todos aqueles que olhavam para ela, seguindo até o fim do quarteirão, sabendo que a via Crucis continuaria, tomando as próximas ruas. Os que acordaram muito cedo pareciam se vingar, tecendo comentários nada solidários "por isso que eu sou prevenido!".

Duas horas já de pé... o Sol já me incomodava, batendo no rosto. Botei o casaco para fugir do vento que batia nos braços e os passarinhos já me irritavam, porque atrás do posto havia uma área preservada, cheia de ararrinhas-verdes que cantavam o tempo todo com a afinação de maritacas. Três horas de fila... os meus pés já amaldiçoavam a minha ideia de chegar mais cedo e ardiam. Uma senhora, atrás de mim, tossia e espirrava tanto dentro da máscara, que eu me sentia como alguém que estivesse em uma fila de distribuição da Covid e olhava para ela com cara de gato assustado quando sobe a corcunda e arrepia o pelo. Dava uma leve distância com os pés. Mas a cabeça só me mandava fazer como o personagem do Leão da Montanha "Saída pela direita!" e fugir dali.

4 horas de fila. O posto abriu, a fila do tamanho da população da China andou e finalmente entrei no local da vacinação. Quando cruzei o portão e mostrei a carteirinha de vacinação na guarita, senti tudo tinha valido a pena. Cheguei a ouvir a melô da vitória na minha cabeça "tan tan tan tan tan..."até que... outra fila? Era isso mesmo. A fila era uma boneca polonesa que tinha mais duas filas dentro! A de quem entrou no posto e de quem seguiria para o galpão de vacinação. Nessa hora, eu achei que tudo estava ruim, mas errei, porque piorou bastante...

Enquanto o "gado" estava distribuído nas duas filas, uma fila de carros que tinham chegado naquela hora começou a entrar no pátio do local de vacinação. As pessoas eram vacinadas, tiravam foto e iam embora.

A etiqueta manda que eu me abstenha de repetir as palavras que nós, o admirável gado novo começamos a proferir nas duas filas. Tinha gente batendo palma, xingando o prefeito e até gritando "olha o boi"para os fura-fila. Um homem bem alto e forte foi tirar satisfação com o segurança que permitia a entrada dos carros e namorada do camarada, orgulhosa gritava "esse é o meu noivo, muito bem, amor!". E assim aquilo ia se tornando um circo dos horrores. De repente, Deus lembrou que também é brasileiro, o segurança se escondeu do valentão, os carros foram bloqueados na cancela da guarita e as filas andaram.

O sol já queimava a minha pele, o vento me gelava, porque estava desde às 6 horas da manhã sem comer e já não ouvia os passarinhos, de tanta fraqueza. Até que ouvi alguém dizer "próximo" e olhei para aquela moça de jaleco branco, que àquela altura, mais parecia um anjo me chamando e andei até ela...

Fui vacinada! Uma alegria imensa tomou conta de mim. Até que vi uma moça, acompanhada de um rapaz com uma câmera enorme na mão. Passei por ela e ouvi "psiu, quer falar com a gente sobre a confusão que está lá dentro"?

Ah, a orelha do prefeito deve ter ficado vermelha de tanto que eu reclamei. Sobrou até para o vendedor ambulante de vaga na fila! Falei da falta de organização da prefeitura nessa encarnação e em todas as outras. No final, a repórter pegou os meus dados pessoais para dar o devido crédito à entrevistada, como é de de praxe.

Cheguei à casa, como quem encontra um porto segura, agradeci a Deus pela vacina e comecei o ritual do retorno. Tira a roupa suja, bota no cesto forrado, sapato do lado de fora, veste o chinelo de dentro de casa, bota o roupão, entra no chuveiro...ops! Esqueci de tirar a máscara.

Depois do banho, percebi que eu parecia um pacote de biscoito Cream-Cracker quando cai no chão. Estava torta e esfarelada. O celular tocou e eu reclamei de ter que esticar o braço para atender. Era uma amiga, dizendo que tinha lido a minha entrevista em um jornal on-line. Ela fez um print da tela e eu vi o meu nome grafado. Mas estava errado! Do jeito que foi escrito, eu nunca tinha realmente exercido o meu direito à cidadania, mas uma outra Aline com um nome parecido com o meu. É dose!

Ideias crônicas. Deixa que eu te contoOnde histórias criam vida. Descubra agora