Amarelo - Seu bolo de fubá solado

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Amarelo - Seu bolo de fubá solado

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Sejamos sinceros, meu querido, cozinhar nunca foi seu ponto forte, sabemos. Perdi as contas de quantas vezes você e a cozinha pareceram entrar em uma guerra de molho, farinha e vasilhas, em que nem o teto saia impune da violência do combate. Mesmo sendo um completo desastre, você nunca deixou de tentar e sou grata por isso.

Quando minha avó faleceu fui tomada por uma tristeza que jamais imaginei ser possível de recair sobre mim, um luto doloroso carregado de culpa e arrependimento. Me martirizava por não tê-la visitado com mais frequência nos últimos anos, por não estar ao seu lado segurado suas pequenas e frágeis mãos na noite em que a morte a visitou. O véu negro da dor cobria meus olhos, cegando-me em um ciclo de pensamentos que não traziam soluções. Por sorte, eu tinha você.

Em uma tarde de domingo em que estava amuada no sofá, tentando ser produtiva e escrever um mísero parágrafo no notebook sobre minha pesquisa da pós-graduação, você enfiou-se na cozinha. E tenho que dizer, percebi apenas quando um cheiro conhecido tomou minhas narinas e ouvi chamar meu nome do pequeno espaço adjacente. Não poderei informar quantas horas fiquei sentada com uma página em branco do editor de texto aberto, mas quando, finalmente, levantei e fui na direção da sua voz, minhas pernas falharam.

A cozinha estava uma zona completa, a pilha de utensílios na pia parecia quase arquitetônica. Porém, foi apenas quando deixei de observar ao redor para ver seu rosto afável, que sai do meu transe deprimente e os aromas conhecidos de café fresco e bolo recém-assado, que tomavam conta de toda a casa, me abraçaram. Você estava em pé, sorrindo abertamente, ao lado da nossa mesinha redonda, onde costumávamos tomar café-da-manhã juntos e que um dia quase colocamos abaixo quando a excitação nos fez pensar que era mais firme do que parecia. Sobre o tampo de madeira havia disposto dois pratos de porcelana colorida com duas xícaras combinando, o bule de café e ao centro um bolo redondo de furo no meio, baixinho e dourado. Minhas pernas bambearam mais uma vez.

- Sua avó me deu a receita de bolo de fubá que você gosta de comer, sinto não ter

a mesma habilidade das avós para preparar bolos, mas acredito que ficou bom!

Suas doces palavras atingiram-me com força, desabei. O choro veio engasgado, seus braços estavam em volta de mim antes que as grossas lágrimas pudessem atingir o piso sujo de trigo, para molhar sua camisa quando afundei o rosto em seu peito. Premiti-me chorar a perda apenas no dia do enterro de minha avó, os dias subsequentes de melancolia foram secos e ásperos. Mas naquele momento, lavei a tristeza em seu abraço.

Vovó e você se deram maravilhosamente bem desde o primeiro segundo em que se viram. Duas pessoas amáveis e gentis, sopros de carinho em dias duros e hostis. Penso que, se nossa rotina atribulada tivesse permitido a você ter mais tempo com ela, e se a vida não a tivesse levado, teriam se tornado unha e carne. E o fato de que ela secretamente lhe confiou uma de suas receitas favoritas, e minha também, era a prova de que seriam.

Não sei quanto tempo passamos em pé no meio da cozinha, eu chorando todas minhas culpas inexistentes, enquanto você permanecia em silêncio, apenas afagando meu cabelo, mantendo-me segura em seu abraço. Quando as lágrimas não mais desciam e minha respiração tornou-se tranquila, seus lábios tocaram minha testa e com um sorriso amável convidou-me a sentar.

- Vamos lá, quero que me diga se ficou bom! - com uma faca de serra cortou dois pedaços do bolo, servindo um para mim e outro para si.

Secando as bochechas com as palmas das mãos, o sorriso nasceu em meu rosto como arco-íris depois da chuva. À minha frente o pedaço médio de bolo descansava sobre o prato azulado. A simples fatia de massa amarela apresentava seu topo em um belo tom de dourado, enquanto a base estava completamente negra. Sua altura reduzida indicava que algo dera errado e não foi capaz de crescer como deveria. Com o garfinho que acompanhava o prato, retirei um pedaço, desviando do fundo queimado, e o levei à boca. O gosto característico do bolo de fubá preencheu completamente meu paladar, o toque sutil da erva-doce o tornava ainda mais especial. Fechei os olhos por alguns instantes. Apesar da mesma receita, não parecia em nada com o bolo que minha avó tantas vezes preparou para mim, fiquei feliz por isso.

- Certo, está solado, mas não ficou tão ruim - falou rindo, mais para si do que para mim, suponho, enquanto servia café para nós dois.

Estiquei meu braço sobre a mesa para alcançar sua mão, entrelaçando firmemente seus dedos nos meus, fazendo-o olhar em meus olhos.

- Está perfeito, querido.

Você sorriu, para em seguida fazer uma piada sobre o tom preto do fundo parecer com pneu de carro. Depois daquele café da tarde de domingo, o luto deixou meu peito e seu bolo de fubá solado tornou-se tradição em nossa casa. Com o passar dos anos, conseguiu evitar que o fundo se queimasse e, algumas vezes, tirava um bolo alto e fofinho do forno, quando nosso pequeno o distraía tempo suficiente para que não o abrisse antes da hora.

Graças a você, tenho dois bolos favoritos, o de fubá que minha avó tantas vezes preparou na minha infância que guardo com carinho em minha memória, e o seu.

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