De volta ao passado

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Três anos antes


Essa noite vai ser decisiva na sua vida, Ellen! - eu disse para mim mesma quando Antônio entrou na sala de leitura e me entregou o convite da comemoração anual dos Fernandes. De início não pude evitar o pensamento - "e se as coisas não saírem conforme o planejado?" Lembrar que estaríamos no mesmo ambiente quando praticamente toda a cidade se encontraria presente, certamente com seus olhos e ouvidos atentos a menor das nossas atitudes, me fez tremer e correr ao meu quarto. Não, eu não iria arriscar. Enviaria um bilhete pedindo que nos encontrássemos, pois eu precisava convencê-lo de que o melhor seria procurarmos uma outra alternativa. Fugir nunca seria a melhor das opções. 

Sentada em frente a escrivaninha que ficava sob a janela do meu quarto, minha mão deslizava célere sobre o papel. "Preciso vê-lo antes do jantar. Amanhã, às 15h, eu estarei a sua espera." Fechei o pequeno bilhete dentro de um envelope e guardei sob o corpete do meu vestido. No momento oportuno  eu o entregaria ao Antônio para que ele o fizesse chegar às mãos de Benjamin. Ele teria de aceitar a minha desistência, afinal, era para o nosso próprio bem. Eu morreria se alguma coisa acontecesse com ele e não estou de jeito nenhum disposta a correr esse risco. Por Deus, por que minha vida tomou esse caminho? Por que não pude escolher o meu destino?  Essas perguntas eu me fazia repetidamente porque me custava aceitar a subjugação a que nós, mulheres, éramos expostas. Na verdade eu nunca entendi como mamãe aceitou pacificamente os mandos e desmandos de papai. E, mais, eu não aceitava o fato de ela não ter ficado ao meu lado quando ele decidiu sobre o meu futuro. Um futuro que eu se quer pensava em escolher pra mim.

Ainda no meu quarto eu me detive lembrando novamente a forma como tudo aconteceu. Naquele dia papai chegou em casa sorridente, fato que há muito não acontecia. Eu contava pouco mais de 15 anos, e recentemente tinha  sido apresentada  nos círculos sociais da nossa cidade como a jovem senhorita Ellen Grace Tavares. Filha única, sempre tive tudo que quis, e mesmo quando os negócios da nossa família desandaram, nunca me faltaram roupas e sapatos novos, chapéus, joias,  perfumes... "Se há uma coisa que os Tavares não podem perder é a dignidade" - lembro de ouvir o meu pai repetir isso diversas vezes, quando mamãe tentava contê-lo nos gastos que, com razão, ela julgava desnecessários. Claro que na época eu não concordava com ela, pois embora estivesse ciente das dificuldades financeiras que enfrentávamos, eu não queria perder a posição e o prestígio que começara a desfrutar nos saraus, jantares e bailes que passei a frequentar.

Por isso, quando vi o papai entrar em casa no fim daquela tarde, imaginei que algo muito bom havia acontecido. Ele que ultimamente andava de cenho franzido e uma expressão que ora denotava revolta, ora angustia, adentrou a sala com um brilho novo no olhar e um sorriso enfeitando-lhe os lábios. 

- Ellen, minha filha, onde está sua mãe? - perguntou-me ele ao beijar minha testa. 

- Estou aqui Gregório - mamãe veio da cozinha e respondeu antes que eu pudesse falar qualquer outra coisa. 

- Muito bem, Geovana, sente-se ao lado de nossa filha, tenho uma ótima notícia para dar e não pretendo ficar repetindo-a. Até porque precisamos correr contra o tempo.

- Pois ande papai, fale logo do que se trata? - questionei já me contorcendo de curiosidade. 

Ele nunca foi um homens de meias palavras, quando tinha algo a comunicar, sempre ia direto ao ponto e às vezes esse seu jeito beirava a grosseria. Mas, naquele momento, papai demorou seu olhar sobre mim e mamãe transformando os segundos em uma angustiosa eternidade. Eu nem imaginava o que poderia ser tão importante para ele fazer aquela reunião improvisada, e embora algo dentro de mim tenha despertado em forma de medo, em nenhum momento eu desconfiei que por trás do seu sorriso e das suas palavras, naquele instante seria selado o meu destino.


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