PARTE I

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Quando ele nasceu, o Sol estava na constelação de Clio. Era uma manhã fria, chovia torrencialmente. Tão logo foi retirado do ventre da mãe, seu pai o ergueu e pronunciou seu nome pela primeira vez: Baruc.

Foi uma grande alegria para a família a chegada do segundo filho. Deu-se, nos dias que se seguiram, uma grande celebração por sua chegada. A mãe de Baruc, nascida sob o Sol de Euterpe, entoava canções de ninar com sua voz capaz de tocar o coração do mais implacável guerreiro e encantava a todos que a viam embalar Baruc. Já o pai, talentoso carpinteiro frequentemente requisitado por nobres e senhores de terras, que fora agraciado por Calíope, ocupou-se de finalizar o berço do pequeno recém chegado.

Mas a alegria não duraria muito tempo. Alguns Sóis antes do nascimento, Vossa Majestade havia declarado guerra à Aliança de povos gentios habitantes dos arredores do reino. Nas palavras do Rei, era urgente acabar com os não-agraciados, porque eles desrespeitavam e ameaçavam a continuidade d'A Ordem das Musas.

Como indicativo de que as coisas já não eram como antes, o Conselho Místico, formado pelas mais poderosas profetisas, e um dos responsáveis pelo aconselhamento de Vossa Majestade, informou que as Musas não mais agraciariam os novos nascidos até que a guerra fosse vencida pelo Reino do Sol.

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A notícia chegou para os pais de Baruc enquanto eles ainda celebravam seu nascimento. A desesperança logo preencheu o coração dos dois. A informação desse revés veio junto com a convocação de todos entre treze e dezoito anos para ingressar na Armada. Eles deveriam partir para o campo de batalha, que, àquela altura, já era travada nas fronteiras mais internas do reino.

Baruc cresceu ouvindo histórias desse período, principalmente as que envolviam seu único irmão, o primogênito da família que, com quinze anos, teve de deixar a casa e lutar em nome do Rei. Baruc não chegou a conhecê-lo. O custo da vitória do Reino do Sol foi a perda e o desaparecimento de muitos jovens convocados; o irmão de Baruc era um deles. Aqueles que lutaram ao seu lado e voltaram com vida contavam que, mesmo muito novo, Nicolao demonstrou ser um exímio estrategista militar (o que se devia à graça recebida de Urânia). Saber disso era o único conforto da família.

Fato é que, apesar da vitória do Rei após muitos ciclos solares de guerra, os impactos ainda eram sentidos. Com a perda de incontáveis vidas durante as batalhas, o Rei comunicou que os novos nascidos não seriam mais agraciados. A partir daquele momento, ao atingirem treze anos, os jovens deveriam se juntar à Armada ou compor a força de trabalho nos campos de trigo, onde era produzido o alimento para todos os súditos. 

A convocação era geral e irrestrita, e mesmo os que haviam recebido a graça das Musas antes do decreto real teriam de seguir no novo caminho definido pelo Rei ao atingirem a idade.

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Antes de dormir, Baruc pediu para que a mãe cantasse sua canção de ninar favorita, a única que sempre o fazia dormir quando era mais novo. Ela cantou, e a cada nota pronunciada era possível sentir seu sofrimento. O pai de Baruc estava sentindo a mesma tristeza, e, sentado do lado de fora, podia ouvir baixinho a voz da esposa enquanto ela cantava. Ao nascer do Sol da manhã seguinte, o segundo filho daquela casa se juntaria à Armada..

E assim foi. 

O Sol mal tinha nascido quando o comboio real passou pela porta da casa para buscar Baruc. Os soldados vinham duas vezes por ciclo solar para buscar os que já haviam completado treze anos. Em muitas dessas ocasiões, Baruc espiava pela janela seus vizinhos, amigos ou conhecidos, serem levados para os acampamentos militares e para os campos de trigo. Naquele dia, tão chuvoso como no dia do seu nascimento, foi a vez de Baruc ir embora.

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Mesmo após uma década do fim da guerra, grupos de gentios ainda tentavam incursões contra o Reino. Foi, segundo o Rei, por esse motivo que se fez necessária a convocação dos jovens para se juntarem à Armada. A consequência mais direta dessa situação foi o nascimento de uma geração de não-agraciados pelas Musas.

Mesmo assim, sempre que um novo jovem se juntava ao comboio, a primeira coisa que perguntavam era: qual a sua Musa? Alguns respondiam com orgulho, como se tivessem esperança de que um dia a graça que lhes fora privada seria finalmente recebida; outros respondiam entristecidos, porque já haviam aceitado que não seriam como seus pais e irmãos mais velhos. Em todo o trajeto, Baruc conheceu garotos nascidos sob o Sol de todas as Nove Musas.

O comboio seguiu por mais algumas vilas e recolheu outros jovens, garotos e garotas. Ao passar na última vila, o líder comunicou que finalmente seguiriam para os acampamentos militares e para os campos de trigo, onde deixariam os destinados daqueles pontos.

De todos os que se juntaram ao comboio, um chamou a atenção de Baruc por algo que disse meio vagamente; algo que mais ninguém deu importância, mas que Baruc (talvez por querer acreditar) não conseguiu tirar da cabeça. Guillén, nascido sob o Sol de Melpômene, contou a história de um Palácio no cume de uma montanha nevada ao Norte, lugar onde era possível encontrar as Nove Musas zelando por e agraciando todos os recém-nascidos.

O comboio já estava quase vazio, e a noite já dava sinais de que estava chegando. Baruc não via a hora de chegar no acampamento para perguntar mais detalhes sobre o tal Palácio das Musas. Onde ficava? Como chegar? Ele estava disposto a ir atrás do que lhe foi negado a vida inteira. No entanto, isso não seria possível. O comboio parou, era o penúltimo acampamento. Lá, três desceram, incluindo o garoto que contou sobre o Palácio.

Baruc ainda seguiu para o acampamento mais ao norte, o último acampamento, onde a única barreira entre o reino e o resto do mundo (que ninguém que ele conhecia tinha visto) era uma densa floresta de sequoias gigantes. No final do percurso, Baruc só conseguia pensar no que o garoto falara mais cedo. E ele não esqueceria essa história pelos próximos quatro ciclos de treinamento.

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Com o passar dos ciclos solares, no intervalo entre os intensos treinos de espada, de artes marciais e de estratégia militar, vez ou outra Baruc ainda se lembrava do que escutara no comboio, no dia em que deixou sua casa. Mas ele não sentia mais a chama de esperança que sentiu naquele momento.

Tudo mudou quando veio a notícia de que alguns acampamentos seriam unidos, por decreto do Rei. Com essa decisão, o grupo de Baruc receberia, no dia seguinte, alguns jovens vindos de outro acampamento. No outro dia, antes que o Sol atingisse o ponto mais alto no céu, Baruc, que estava de guarda na entrada do acampamento, viu um grupo de guerreiros se aproximar. E, mesmo a distância, conseguiu reconhecer Guillén.

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A Ordem das MusasOnde histórias criam vida. Descubra agora