Ladrãozinho

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A bruta chuva castigava a pequena cidade, açoitando suas ruas, casas e construções com seus pingos imparáveis e constantes. A sonoridade chiada e sibilante ecoando infinitamente, espalhada pelas esquinas e bairros quaisquer. A luz azulada do luar noturno reluzia por entre pedras, paredes, janelas e tudo que a cidade tinha para oferecer. Por conta da força da tempestade, não havia uma alma viva fora de casa. Ninguém que pudesse ver, testemunhar, presenciar qualquer ato ocorrido no meio da noite. E por mais que tal receio corroesse a alma, existia alguém que não se deixava intimidar: um homem totalmente coberto, misterioso.

Sua figura serpenteava entre a água de forma sinuosa e discreta. Possuía direção, objetivo, mas não parecia. Qualquer um que visse, de olhar desatento, perceberia um zé ninguém andando torto e sem rumo. Entretanto, muito contrário a isso, o homem andava pelas ruas tão familiarizado ao local que parecia fazer parte dele. O próprio corpo, coberto de trapos negros, mesclava-se ao calar da noite chuvosa e desaparecia, quase invisível, imperceptível a olho nu. A estratégia era boa para noites movimentadas ou, no caso específico, não ser visto de maneira nenhuma após um golpe bem sucedido.

A caminhada furtiva enfim o levou ao objetivo: um pequeno casebre em um beco escuro e sujo. Engolido entre casas e construções maiores, no fundinho do corredor de concreto agressivo, descansava no mesmo lugar de sempre. Vendo de fora, acometido pela tempestuosa noite, a casa parecia querer desabar a qualquer instante. Suas tábuas titubeantes rangiam alto, ameaçando soltar, mas sendo detidas por dezenas de pregos entalhados no fundo da madeira. Sua luz fraca e amarelada emanando das janelas e frestas mais parecia o extinguir de uma chama, que em seus momentos finais, soltava últimos raios luminosos heroicos para enfim esvanecer na história. Ajeitou o chapéu, escondendo ainda mais o rosto e chegando na porta. E então, sem cerimônias, entrou, a porta destrancada.

Forçou os olhos lentamente assim que foi atingido pelo clarão de luz amarela, as pálpebras fechando involuntárias. As tábuas de entrada rangeram, não suportando o peso de seu corpo, afundando mais do que deveriam para dentro. Agora, iluminado pelo brilho amarelado, detalhes do homem oculto se tornaram visíveis: cabelo castanho claro escondido abaixo do chapéu, olhos marrons, pele branca enfeitada por algumas pintas e sardas. Estatura normal, cerca de um metro e setenta. Seu corpo, coberto por camadas de roupas, aparentava ser mais robusto do que realmente era; com o retirar de mantos negros, revelava-se um sujeito magro e esguio, sinuoso tal qual um felino. Mal tivera tempo de se recuperar, apoiar a bolsa que carregava em algum canto e tomar um ar, quando um grito pueril preencheu a residência, sobressaindo-se em relação ao sibilar abafado da chuva batendo no teto.

— PAI!!! — O grito irrompeu dos confins da humilde residência, seguido de estalidos altos de passos pelo corredor. Um menino surgia lá do fundo, energicamente, correndo de encontro com o homem e lançando-se para um abraço.

Recebeu sem pestanejar, de braços abertos, o garoto tão animado. Apertava com força o menor, acariciando seu cabelo também castanho, mas mais escuro. Sentiu o rosto alheio em sua clavícula, sorrindo de leve, sua mente viajando por um segundo. Há pouco tempo atrás, mal batia em sua cintura, e agora, já estava chegando até a altura do pai. Incontrolavelmente, ao pensar nisso, seus olhos voltaram para o batente da porta, onde viu diversos entalhes feitos com faca seguidos de anotações, números fracionados em metros e centímetros. O mais recente, de uma semana atrás, batia a marca de um metro e sessenta. Não era muito alto para um garoto da idade dele, mas deveria crescer mais um pouco, quiçá alcançar a estatura do progenitor.

— Boa noite, filho. Senti sua falta. — Declarou ao mais novo, separando gradativamente o abraço, e então deslizando a alça da bolsa do ombro até a mão. Em seguida, abria o zíper e começava a remexer algum conteúdo ali dentro.

— Nós sentimos muito a sua falta, pai! A mãe e eu. Você demorou tanto, eu achei que... — O semblante se obscureceu por instantes, a cabeça baixa evitando pensar no pior, mas era impossível. Pensamentos sombrios iam e vinham de vez em quando. — Não importa, você está aqui. Deu tudo certo? Poderia ter me levado junto...

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