Xamã renegada

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Suor desceu pela testa, dentes trincaram uns nos outros, músculos contraíram violentamente. Encolheu-se em posição fetal, as mãos na cabeça que fora acometida por uma dor insana e lancinante. O simples pronunciar daquelas palavras, o mero toque em tal líquido, era mais que suficiente para destruí-lo por inteiro. Mas diferente da maioria, que a esta altura já estariam apagados, o homem não se deixaria abater tão facilmente. Sua ambição, seu ego, sua necessidade megalomaníaca por poder não o permitiram simplesmente desistir, só deixar tudo para lá e jogar a toalha. Não mesmo, já era tarde demais para voltar atrás agora. Precisava terminar aquilo que começou, ainda que custasse a própria vida, sanidade ou alma.

Se levantara com dificuldade, cada mínimo movimento doía. Uma dor muscular sem igual, mais potente do que qualquer coisa que sentira na vida. Um tipo de força invisível agia sobre seu corpo constantemente, sem deixar de tentar impedi-lo por um único segundo sequer. Seus passos eram tão pesados que parecia estar carregando mais de cem quilos no corpo, sua respiração lenta e errática, como se algo obstruísse as vias aéreas. A cabeça latejava, quase explodindo, em picos de dor insuportáveis e com ápices incrivelmente duradouros. Sua visão tão turva quanto uma água barrenta o impedia de enxergar um palmo a frente, o levando a tatear o chão para se guiar, impedindo que trombasse na coisa mais importante para a tarefa.

Na falta das vistas, utilizou a audição para ter noção de sua posição na casa. Escutara o choro alto do bebê, prontamente o seguindo para encontrá-lo. Em meio aos seus toques no chão, pôde sentir um líquido pegajoso e quente, grosso e de cheiro bem forte. Sabia que era sangue, tendo total conhecimento de quem, mas não importava no momento. Apenas passou por cima do corpo inerte da mulher, o pescoço com um rasgo profundo ao ponto de alguém conseguir colocar a mão inteira lá dentro. Morreu de olhos abertos, uma expressão de surpresa estampada na face em puro desespero. Ignorava a sua vítima de há pouco, precisava chegar na maldita criança logo.

Começou a sentir um calor retumbante, desidratante e escaldante. Arrancou suas pilhas e pilhas de mantos negros e escuros, revelando enfim sua aparência diante ao recém-nascido absorto em choros; se tratava de um homem alto, cerca de um metro e oitenta e cinco. Pele bem clara e conservada, diferente do rosto desleixado: barba embaraçada por fazer, cara suja de terra seca, rugas de expressão de quem constantemente faz cara feia, olhos esbranquiçados e cabelo bagunçado e sujo. Olheiras profundas denunciavam sua abstinência de sono gigantesca e incompreensível. Corpo magro e esguio, mas um tanto estranho. Observando os mantos, comparando com o tamanho do corpo alheio, eram grandes demais, largos em demasia até para pessoas que gostassem desse tipo de roupa. Um indício de que, anteriormente, era mais pesado, mas havia perdido muito peso em pouco tempo.

Subitamente, a sensação de estar sendo repelido por algo extremamente forte parou, causando um choque impactante. Toda a dor e canseira sumiram magicamente, de uma hora para outra. Sentia como se houvesse ultrapassado uma película invisível que o separava da criança. Tal película o açoitava de toda forma possível, tentando desesperadamente impedir sua entrada, mas falhou, miserável. Lutara bravamente até as últimas energias, lançando sobre aquela pessoa toda a desgraça que tinha disponível, mas o espírito daquele ser profano era forte demais, perseverante e determinado. Absoluto na teimosia e no ego imensurável.

Um sorriso sarcástico escapou pelos lábios, ostentador de sua vanglória e perversidade. Riu, alto, gargalhando com vontade e gosto de forma repugnante. A risada esganiçada brotara sem impedimento, explodindo pulmão a fora intensamente. Os olhos cansados, agora funcionais novamente, analisavam os arredores e logo captavam algo diferente e imperceptível antes: a película.

Do lado de dentro, pôde enfim enxergar uma espécie de redoma da cor vermelha, um tanto translúcida, mas grossa. Ela circulava uma área mediana, talvez mais de vinte metros. O corpo da mulher descansa sobre os limites da barreira, parcialmente para o lado de fora. A pouca luminosidade das velas do lado de fora penetravam, mas suas cores se transformaram em rubras, causando um aspecto macabro na iluminação da redoma. Tudo parecia vermelho, sem exceção. Aparentava estar enxergando mergulhado numa piscina de sangue, fresco e visceral, recém retirado de corpos alheios.

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