Parti após o desjejum, o pátio do castelo estava cheio, inocentemente gerei uma pequena multidão que ofereceram suas bençãos a mim e imploraram para que eu derrotasse Nordhad, os soldados me olhavam com inveja e as donzelas acenavam, camponeses e criados reais pararam de trabalhar para me ver partir, pessoas as quais nunca troquei uma palavra, mas que queriam me ver vitorioso. A única coisa que pude fazer foi acenar e sorrir. Isso era algo que não estava acostumado, o crédito para as batalhas vencidas geralmente vai para os generais e soldados, mas nunca para os mercenários, o único sinal de gratidão que um mercenário recebe é um punhado caloroso de moedas, algo que nunca reclamei de ganhar. Quando passei pelo portão os guardas ficaram eretos e bateram com suas lanças pesadas no chão em sinal de respeito.
Conseguia ver o vale enevoado após as fazendas de batata, saí trotando em direção ao meu destino, os camponeses que não foram para o castelo trabalhavam arando a terra, colhendo e plantando, quando me viam faziam sinal de despedida e alguns lançavam palavras de benção e boa sorte. Um camponês magro de meia idade junto de sua filha que não passava de 15 anos me ofereceu um saco com algumas batatas para a viagem, humildemente aceitei e amarrei nos alforges de Everard. O clima estava bom, céu limpo, sem sinal de chuva, apenas a névoa encobria o vale ao fundo.
Após as plantações ficarem para trás, restou apenas eu, meu cavalo e o silêncio, podia ouvir apenas o som dos cascos no chão de pedra e o som ao longe dos pássaros cantando. O sentimento de solidão veio até mim, mas também de paz, finalmente tinha um objetivo em vida, algo que estava determinado a realizar. Nas primeiras horas de viagem não senti medo, mas logo os pensamentos sobre o que Nayenna disse brotaram em minha mente de súbito e senti um temor, lutei contra incontáveis homens em minha vida, enfrentei a morte mais vezes do que pudesse contar com os dedos das mãos, mas jamais encarei algo sobrenatural, nunca pensei que iria ter a oportunidade de me tornar um herói que brande sua espada mística contra gigantes ou dragões, mas a ideia estava começando a me fazer criar expectativas. Um dia um poeta irá verbalizar a história que estou prestes a começar e serei eu, o herói.
O único momento que tive contato com o mundo místico foi quando ainda era adolescente em um dos bandos de mercenários que fiz parte, em uma noite tranquila de bebidas e música no acampamento um troll cinzento apareceu de súbito e nos atacou, era uma criatura horrenda e nefasta, pelo que minha memória ainda guarda, tinha em média uns cinco metros de altura, sua pele era acinzentada com manchas negras, seu corpo era coberto de pelos e andava curvado com as mãos no chão como apoio, havia musgo em suas costas e braços, como se tivesse um pântano crescendo em si, careca com orelhas pontiagudas, nariz adunco enorme, barba negra que batia em seus peitos, seus olhos eram mortalmente amarelos e tremeluziam na escuridão da noite. Usava apenas uma tanga e portava no pescoço um colar adornado com crânios humanos que ao olhar pela primeira vez me fez tremer de medo.
A primeiro momento o acampamento paralisou sem reação, e então a matança começou, a criatura possuía um porrete de madeira da grossura de um tronco de árvore, ele o ergueu e rapidamente o desceu macetando os desafortunados que estavam perto e destruindo nossos suprimentos e barracas. Gritaria e caos ecoaram na noite, ele batia com seu porrete nos meus companheiros e eles voavam para longe, quando batiam em algo já estavam mortos ou a colisão terminava de os matar, sem ao menos ter chance de se defender. Os que não morreram logo de cara ao encontro do troll tiveram tempo de tentar um contra-ataque, nos armamos com lanças e não podendo nos aproximar as jogávamos em direção ao monstro sem muito sucesso, era como se tivesse uma crosta dura em sua pele que dificultava penetração de armas, as lanças que acertaram mal conseguiam entrar em seu corpo e o monstro basicamente ignorou as lâminas que penetraram seu corpo como se não sentisse dor ou se não fosse suficiente para abalá-lo.
Logo percebemos que atacar de nada iria adiantar e ele zombava de nossas tentativas, gargalhava alto num riso estridente que abafava o som dos gritos de terror pela floresta, ao ver que não podia fugir, Gaun, o bardo continuou tocando seu instrumento numa melodia triste, o troll riu ao ver isso e parou por um instante para se regozijar de prazer, o que deu tempo para escaparmos, quando percebeu que estávamos fugindo terminou com a vida do pobre bardo afundando-o no solo com seu porrete, tentou correr atrás dos sobreviventes mas já tínhamos entrado na floresta e creio que já tinha se satisfeito com a matança que fizera e nos deixou. Corri pela noite inteira, tropecei incontáveis vezes em raízes de árvores mas não parei até que o sol nascesse, naquele ponto já tinha perdido meus companheiros de vista, nunca me senti tão cansado em toda a vida e quando parei apenas cai no chão até ter forças para me levantar e procurar por meus companheiros sobreviventes, encontrei apenas dois escondidos em uma caverna e compartilhamos o pouco de comida que achávamos até encontrarmos outro bando que nos acolhesse e risse de nossa história em descrédito. Naquela noite perdi tudo que tinha, enquanto padecemos de fome, a fera se alimentou de nosso sangue.
Só de pensar que iria vivenciar novamente situações parecidas meu sangue gelou e tive calafrios, mas algo me fez continuar meu caminho até o fim.
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O Último Gigante
Historical FictionGallard, um experiente mercenário é enviado em uma missão de assassinar o último gigante que pisa sobre a terra. Na companhia apenas de seu cavalo Everard, ele embarca numa jornada que o relembra de seus momentos mais obscuros enquanto é perseguido...