Convergência

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"Estou em um descampado, pássaros negros sobrevoam a minha volta. Minhas roupas se resumem a um vestido rosa claro delicado e brega, meus pés se encontram descalços e meus cabelos estão soltos mas desgrenhados.

Tento caminhar, porém escorrego e caio ridiculamente no chão e, então, a sombra obscura de pássaros me cobre, bicando minha pele, arrancando meus cabelos e unhas com suas garras enormes e me causando um pânico inigualável."

Acordo em um sobressalto, apavorada com o sonho estranhamente amedrontador de segundos atrás. Estou suada e ofegante, como se tivesse corrido uma maratona. Minha garganta arranha com a sede arrebatadora e me forço a levantar da cama, indo em direção ao banheiro. Lavo o rosto e escovo os dentes para tirar o gosto amargo da boca.

A cozinha se encontra do jeito que a deixei quando resolvo procurar por algo para matar a fome monstruosa que se apossa de mim. Abro os armários com a esperança de encontrar algo fácil e rápido de fazer e, finalmente, o tão glorioso e aclamado miojo aparece para mim após esconder-se no fundo do móvel.

Pego uma das panelas pequenas e coloco água, levando ao fogo para fervê-la. Enquanto aguardo, encho um quarto do copo de whiskey puro e sem gelo mas, quando meus lábios encostam no vidro, uma batida na porta é ouvida.

Praguejo internamente quem quer que esteja atrapalhando minha bebedeira enquanto caminho até a porta. Quando a abro, um homem nu e com o corpo parcialmente sujo de terra, me olha e balbucia algo que não entendo.

-- Oi? -- Meu ser é confusão. Quem, em sã consciência, apareceria nu e sujo na porta de um estranho às onze de uma noite de nevada? -- Quem é você? -- Antes que possa responder, o homem tropeça nos próprios pés e cai em minha direção. Sou rápida ao me mover para o lado, deixando-o bater com o rosto diretamente no chão.

O estranho se mantém imóvel enquanto me encontro em choque, perguntando-me se matei-o. Com a adrenalina ao máximo, começo a pensar em jeitos de esconder um corpo-provavelmente, defunto. O torpor me faz agir e puxar o conjunto de músculos em direção ao carpete da sala, deixo-o ali e busco um lençol para o cobrir.

Passou-se meia hora e ele ainda continuava desacordado e respirando com dificuldades. Nesse meio tempo, joguei a água da panela e o whiskey no ralo da pia, lavei minhas mãos e tomei um copo grande de água gelada.

Ao terminar de abrir o chocolate, escuto um barulho estranho vindo do lugar onde deixei o homem. Vou para a sala e o encontro sentado com a mão na cabeça e resmungando de dor. Seu olhar encontra o meu e ele levanta rapidamente, segurando o lençol junto ao corpo.

-- O que você está fazendo aqui? -- Perguntou-me como se fosse o dono do local.

-- Olha, eu sei que está assustado mas não precisa ser rude. -- Uso da pouca paciência que me restava ao referir-me ao garoto.

-- É meio difícil ser educado quando se encontra outra pessoa morando na sua casa. -- Falou em puro deboche, como se aquilo fosse uma completa piada.

Soltei uma risada sem humor, cruzei os braços e o olhei de cima a baixo antes de retrucar:

-- Primeiro, você aparece na minha porta todo sujo e sem roupa alguma e, agora, quer reivindicar algo que nem é seu?! -- Ele fica calado e caminha em direção a suíte -- O que você pensa que está fazendo?! -- O garoto só me ignorou e seguiu para o banheiro, fechando a porta na minha cara.

O barulho do chuveiro preencheu o ambiente enquanto a raiva, por toda situação, tomava meu ser. Saí de perto da porta e sentei-me na cama grande para esperar o querido sair do banho.

*-*-*-*

Estava quase cochilando quando a porta do banheiro se abre e, de lá, sai o estranho trazendo consigo um aroma cítrico de sândalo e apenas uma toalha cobrindo suas "partes valiosas". Anda pelo quarto, parecendo confortável com sua nueza e ignora-me novamente.

Sigo-o até o closet, onde ele deixa a toalha cair e começa a vestir-se, demonstrando que minha presença ali era insignificante. Indignada com tal falta de vergonha na cara, desvio o olhar para qualquer canto que não seja o corpo nu e um tanto atraente.

-- Pensei que fosse me admirar por mais tempo. -- Usa de uma seriedade que não cabia àquela situação, o que fez-me ter certeza de que ele não conhecia a definição da palavra "timidez".

-- Já te falaram que você é muito pretensioso? -- Afronto o metido, calando-o brevemente pela segunda vez naquela noite. -- Não presumi que precisaria de tão pouco pra te deixar quieto. -- Quando volto meu olhar para ele, não existia mais nudez e sim, roupas de cor escura e formais.

Como em um passe de mágica, a um piscar de olhos, estava cara a cara com o garoto, compartilhando do mesmo ar e deixando-me petrificada como um coelho quando se depara com a morte certa.

-- Eu não sei o que está rolando aqui, mas essa casa é minha e vai continuar sendo até que eu descubra que porra de confusão é essa. -- Seu tom era calmo, tão baixo que eu não conseguiria escutar se não estivéssemos tão próximos.

-- Se quiser que eu saia, vai precisar de mais do que meras palavras vazias. -- Mesmo com certo receio do que ele poderia fazer-me, não deixei transparecer o medo e ergui o queixo, encarando-o a mesma altura.

Ele continuou com aquela pose impassível de macho alfa ao abrir um sorriso ladino e olhar-me com certo divertimento.

-- É o que veremos, ruivinha -- Foi a última coisa que disse antes de deixar-me só naquele closet exageradamente grande.

-- Babaca -- Praguejo entredentes enquanto acompanho o som dos passos dele sumirem e a porta bater, indicando que estava sozinha novamente.

Fui para a sala e coloquei em um programa qualquer, pensando em como aquilo tudo poderia ter acontecido em uma noite só.


The chaos aheadOnde histórias criam vida. Descubra agora