Capítulo II

67 2 9
                                    

Era uma noite estrelada e agradável quando os ciganos começaram a deixar a cidade. Iam alegres e bem-dispostos. Os bolsos cheios e o estômago farto. Tinham-se divertido nas festas, mas tinham também amealhado recursos para o futuro.

Pode parecer que eles tivessem vida livre e descontraída, o que até certo ponto era verdade. Seus preconceitos, porém, eram outros, bem diferentes das outras raças.

Apesar de nômades, não eram imprevidentes e aproveitavam a primavera e o verão para angariar os recursos para o inverno e os tempos difíceis.

James era um cigano forte e decidido. Príncipe da raça, possuía o mesmo rigor de seus antepassados na liderança de seu povo. Sua palavra era lei. Seu clã contava com mais de cem componentes, e ele exercia a função de chefe, juiz e autoridade suprema. Era muito respeitado por seu povo e tido como homem astuto e capaz. Alguns o consideravam sábio. Sabia ler, e isso exercia incrível fascínio em seus subalternos. Cantava bem como poucos e tocava a guitarra como ninguém antes o soubera fazer. Dançava com leveza e elegância, apesar de seus cinquenta anos, e ninguém se atrevera jamais a desobedecer-lhe uma determinação. Era tido por homem justo e sem protecionismo a qualquer deles. Cuidava zelosamente dos interesses do grupo. Talvez por isso eles fossem menos belicosos entre si, e embora se tratassem grosseiramente por serem homens rudes, estimavam-se e conviviam pacificamente.

Suas brigas tinham o sabor de uma disputa esportiva, eram assistidas e festejadas pelo bando todo, que tinha suas preferencias, cada um torcia por seu favorito. Mas muitos problemas da vida comunitária deles eram resolvidos assim no murro e na lei do mais forte, de frente e sem favoritismo. Quando alguém incorria em falta que se reputava grave, muitas vezes James reunia os chefes de família, os mais velhos, e faziam um verdadeiro julgamento do culpado, sendo-lhe aplicada a pena que deliberavam necessária.

Durante a chefia de James, tinham aplicado apenas duas penas de morte, e isso em trinta anos de autoridade. Isso representavam nada em uma época em que se matava com muita facilidade, principalmente nas cortes e no mundo tido por civilizado.

Foram casos de traição violenta, e embora tivessem sido executados os dois ciganos, suas famílias não foram responsabilizadas e continuaram vivendo na comunidade e ninguém jamais mencionou sua vergonha nem se referiu aos dois traidores. Ordens de James.

Mas nem sempre o grupo era tão pacato. Ficavam furiosos e perigosos quando alguém ameaçavam a segurança do grupo ou feria um de seus membros. Eram muito unidos. A vingança de um era de todos. O sofrimento de um era de todos. Embora levassem vida livre, misturando-se ao povo e dele arrancando seus meios de subsistência, intimamente não gostavam de conviver com eles.

Votavam aos homens de outras raças um desprezo enorme que levantava grande barreiras e preconceitos. Na verdade, para sermos justos, tinham seus motivos. Olhados como seres inferiores, raros se aproximavam para entreter laços de amizade sincera. Suas mulheres, preparadas desde a infância para exercerem a arte de agradar, dançando, mascateando tachos de cobre, lendo a "buena dicha", eram motivo de grande atração para os homens de todas as classes. E muitos havia querendo corrompê-las ou usa-las ao capricho de suas paixões sórdidas. Muitos deles perderam a vida por isso. Apareciam mortos em locais ermos e se supunha que houvessem sido vitimas de assaltantes, coisa muito comum naqueles tempos.

Contudo, eram afáveis com todos, desde que não transpusessem o limiar de seus preconceitos ou de sua intimidade. Não admitiam casamentos com homens de outra raça. Nos poucos casos que houvera, as ciganas tinham fugido e nunca mais voltado. Eram tidas por mortas e o caso encerrado. Nunca mais poderiam voltar ao clã.

Uma a uma as carroças em fila indiana se puseram a caminho ganhando a estrada. Alguns cantavam, outros tocavam e o cortejo seguia tranquilamente.

Dois homens de confiança iam à frente, ao lado da carroça de James, que puxava a caravana.

A CiganaOnde histórias criam vida. Descubra agora