INTERLÚDIO I

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Mr. Sandman, traga-me um sonho
-- The Chordettes –Mr. Sandman



Certa vez ele ouvira alguém dizer que "Os cabelos de Liberace são ondulados como o mar, pois sim." e não conseguira visualizar como os cabelos de alguém poderiam ondular como o mar. Era bem verdade que nunca havia visto o mar de perto, mas a imagem reproduzida era de um alguém cujos fios de cabelos se mexiam sem parar, para cima e para baixo, sem ter uma forma exata, pois assim era o mar em sua imaginação. "Devem ser difíceis de se cortar" – Ele respondera, sério e em voz alta, na ocasião.

Agora, não havia nada além do mar à frente e ele só pensava em como Liberace deveria ter cabelos realmente impressionantes.

Para além da visão, os bancos de areia seguiam alvos, para ambos os lados, as margens indefinidas pelo avanço sistemático das ondas e às costas as colinas desapareciam no próprio contorno.

No céu claro e sem nuvens, de um azul anil, o Sol era caloroso e amigável.

Olhou para as botas de couro cru, agora molhadas, ao sentir um repentino regelar nos pés. A brisa do litoral lhe acariciou a pele aliviando e os nós que retesavam o rosto se afrouxaram um pouco.

Ele se permitiu fechar os olhos e viver a Ausência e o Silêncio.

Reverberando pelo ar, um fraco tocar de piano chegou-lhe aos ouvidos, um som que sempre esteve presente no limiar da dos sentidos – acompanhando o chiado hipnótico e meditativo do mar –, mas que só agora se desdobrava.

Balançou com a brisa e abriu novamente os olhos.

Todo frio, fome, dor ou solidão lhe haviam sido retirados. 

O coração estava vazio (como o de Pagliacci). 

Ao olhar novamente para o mar percebeu um vulto entre as ondas, destacado por uma redoma de luz branca e pulsante, logo à frente.

A figura, claramente humana, sempre estivera lá, centenas de metros mar adentro e ao toque da mão, tudo ao mesmo tempo. As ondas cresciam ameaçadoras ao redor dela, mas sem a tocar.

Impelido, o homem adentrou o mar. A areia grossa espremia-se entre os dedos dos pés que buscavam cada vez mais impulso para vencer a resistência da água. A medida que avançava quatro coisas lhe ocuparam o pensamento de uma forma engraçada: a distância que se distorcia, transcorrendo de forma desproporcional ao avanço; o vulto que, inicialmente, não parecia se aproximar; (enquanto) o domo de luz diminuía rápido como se se afastasse até, por fim, desaparecer revelando um jovem garoto de olhos expressivos e rosto levemente sulcado em um triste sorriso aparente; a quarta e última coisa era uma indagação "totalmente irrelevante", pensava, mas que, ainda assim, rondava a periferia de sua atenção insistentemente, Ele simplesmente não sabia onde estavam suas botas.

A emergência que o encorajou mar adentro desapareceu assim que alcançou o garoto.

As ondas brandas de água morna rompiam redor da cintura do garoto cuja barra da camiseta branca, suja e surrada, hora aderia do corpo, hora oscilava com o mar. 

"Quem és e o que tu faz por aqui?", perguntou o homem. A voz escapava como um sussurro e ecoava estranha aos próprios ouvidos. 

O garoto respondeu com um piscar de olhos. 

"Onde é aqui?", continuou Ele, mais para si mesmo que para o garoto, e olhou ao redor. 

O sol havia percorrido o caminho sobre suas cabeças em direção à linha infinita que marcava o horizonte. O tom carmesim do céu estava vivo e dominava o entardecer na praia tingindo o mar e a areia, outrora branca. Às costas, por sobre os arbustos espinhentos que delimitavam a orla, erguia-se, muito ao longe, uma conhecida cidade. 

A Rosa e o TrevoOnde histórias criam vida. Descubra agora