No escuro da madrugada,
consegue lembrar do que acontecia,
se caísse em um poço molhado,
cheio de corpos ao seu lado.
"São todos meus", pensou assustado.A chuva lá fora causaria deleite em uma situação normal, em uma noite clara, mas não era o caso. A má iluminação causada por problemas na eletricidade com os barulhos intensos e molhados e incessantes causava ao androide nostalgia, mas era uma nostalgia tão ruim e amarga, e junto com ela vem memórias dolorosas. Ele não se lembra de ter vivido essas memórias, mas consegue sentir a ocasião. Que memórias são essas senão minhas? Eu não lembro de ser descartado.
Mas foi. Foi descartado como muitos outros rk800 quando estavam em fase de teste, como muitos outros protótipos que, pelas memórias, foram jogados em algo bem fundo, podendo ser comparado com um poço e a luz da lua sorridente e maliciosa era só uma bolinha pequena e distante.
A escuridão vermelha causa desespero. Ai de Connor se pudesse sentir dor naquele momento, mas mesmo a não-dor não conseguiu deixar ele mais calmo com todos aqueles pedaços de androide em sua volta. Se mexeria se conseguisse, não sabia que androides poderiam quebrar suas pernas, mas com uma queda tão grande, as de quem não quebraria? E com certeza, se androides tivessem ossos, ele seria perfurado por muitos deles, visto que muitas peças dos protótipos descartados haviam atravessado suas pernas.
Também não sabia que androides podiam tremer, mas com os tremores intermináveis em seu corpo, agora podia dizer que sabia, mas realmente não queria saber.
— Alguém... Alguém pode me ajudar?
Ninguém irá ajudar, ninguém nunca ouvirá suas palavras de desespero, tanto porque não consegue gritar. Será mesmo? Deve ter alguém por perto, vão me ouvir, sim. Você só vai gastar energia, esperança agora é inexistente. Não.
Sem esperança? Mas queria tanto tentar, queria mesmo, mas não tinha força, talvez o baque tenha sido realmente forte para o deixar tão fraco. Mesmo com toda a esperança em seu âmago, não conseguiu fazer nada, não conseguiu se mexer. Se deitou no meio dos corpos, sendo encarado por alguns olhos inexpressivos e mortos. Ficarei assim também?
Se nunca iria sair dali, não tinha o porquê de continuar a viver. Talvez seja por isso que sua bomba de tírio tenha sido arrancada, igual ao que provavelmente aconteceu com os outros protótipos ali amontoados, como se fosse um templo de suicídio.
Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Sem ninguém. Será mesmo?
.
.
.— Ei, ei, Connor? Acorda!
— O quê?
Pelo visto a luz voltou e já era de manhã cedo, os passarinhos já cantavam felizes e conseguia ouvir sons de carros passando pelas buracos com poças de água estagnada na rua. E também, via Hank, com um semblante até que bem assustado e preocupado.
Se o tenente tivesse que fazer um relato pessoal para um programa de tv sobre como foi acordar naquele dia, diria algo como: lembro de acordar cedo, a luz já tinha voltado e a chuva parado. Até acordar totalmente, eu não tinha visto como Connor estava, só sentia a cama se mexendo, não parando de se mexer. Eu pensei algo como "que merda é essa?" e quando me virei parecia que aquele androide tava tendo, sei lá, uma convulsão, mas eu sabia que não era. Eu nunca tinha visto um androide tremer e vê-lo daquele jeito me deixou desesperado. Porra, até pensei que ele poderia estar pifando ou até tendo um sonho erótico de androide, mas acho que se fosse um sonho erótico, ele não estaria com aquela coisa vermelha do lado da cabeça.
— Você estava tremendo pra caralho. Que merda aconteceu? - perguntou, segurando o androide pelos ombros e o chacoalhando levemente a cada frase.
Connor não quis analisá-lo, não naquele momento, acho que nem conseguiria, mas via claramente que o mais velho estava ofegante. Se sentiu culpado.
Não sabia o que responder, nem ele mesmo entende o que acabou de acontecer. Talvez fosse um pesadelo? Androides não tem pesadelos. Bem, talvez divergentes, sim. Se tornar divergente realmente deixou a vida de Connor mais intensa, mas nunca imaginaria que teria um pesadelo, principalmente um tão real. Sério, ele pode sentir em si aquele desespero, poderia dizer que até sentiu dor. Isso é estranho, e se for mesmo uma memória distante? Talvez de outro rk800? Essas perguntas não têm fim e ele supõe que nunca serão respondidas, isso pela sua infelicidade.
Mas teria de responder Hank uma hora ou outra, então disse:
— Eu não sei. Talvez seja algum tipo de pesadelo ou lembrança distante. Eu fiquei com tanto medo, tenente.
O mais velho já tinha escutado aquele tom de voz, e como daquela outra vez, ficou confuso e atordoado, mas também interessado. Tinha uma grande curiosidade sobre esse tal sonho ou lembrança, mas como perguntaria isso para o androide? Era claro o quanto ele estava ainda mais atordoado que si, seu led oscilava em amarelo e vermelho, seus olhos pareciam distantes. Hank acha que não tem muito o que fazer numa situação dessas além de acalmar seu parceiro.
— Tá, vem comigo - disse, com a voz mais suave que o androide já ouviu de Hank.
Hank o ajudou a levantar da cama, mesmo isso não sendo preciso, e com seu braço envolta dos ombros de Connor, levou ele até a sala de estar, se sentando logo em seguida e dando tapinhas no espaço vago, chamando Connor. E ele obviamente se sentou.
— Uma vez, quando eu tinha uns 13 ou 14 anos, eu estava jogando basquete com alguns amigos meus da época. Era uma quadra de rua, sabe? Qualquer um poderia ir lá, mas ninguém chegava antes de mim, era como se fosse um lugar marcado por eu e meus amigos. Nessa vez que a gente tava jogando, o chão tava meio molhado porque tinha rolado mó tempestade no dia anterior, e então, no meio do jogo, bem no momento em que eu ia acertar a bola na cesta, do nada explodiu um fio de energia no poste do lado. E era do lado mesmo, o fio caiu bem do meu lado e eu poderia ter morrido. Nossa, eu lembro que me assustei pra caralho, eu nem peguei a minha bola, só saí de lá correndo o mais rápido possível.
Hank contou essa história com um leve sorriso no rosto, como se não fosse uma lembrança de quase morte. No fim, Connor novamente não sabia o que dizer, isso estava o deixando frustrado.
— Não precisa responder - disse Hank, como se pudesse ler os pensamentos do androide - Só contei isso pra te distrair, funcionou?
— Sim, de fato funcionou, tenente. Mas fiquei curioso, você ficou sorrindo enquanto me contava uma lembrança de quase morte.
— É, eu realmente quase morri, mas foi uma situação do caralho, e eu sabia que quando fosse mais velho eu lembraria dela e falaria algo como "do caralho", os palavrões nunca saíram de mim. E aliás, para de me chamar de tenente. Não estamos no trabalho, e já tô de saco cheio dele.
- Sim, como quiser. Gostaria de ser chamado de quê? Hank? Anderson? Gostaria que eu te chamasse por algum pseudônimo?
— Porra, só me chama de Hank.
— Entendido, Hank.
Talvez seja melhor ignorar o tal pesadelo, não é?

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Memória Abstrusa
FanficSer divergente deixou a vida de Connor repleta de novas oportunidades e sentimentos, mas tem coisas que ainda são difíceis de explicar na divergência, será que todos os androides divergentes tem essas memórias?