Alma tocada

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Um vazio me tocou a alma. Levanto, e com o peso do desânimo nas costas, desço e vejo as portas se fechando por detrás. A caminhada se demorou, levando as reflexões profundas ao extremo do irracional. Quando cheguei a casa, nem mesmo me lembrava onde havia deixado as chaves.

Atrasei-me na realização da rotina, afinal, precisei viver essa virada poética em minha vida. Tudo que se podia era deixado para depois. Adiava a vida para viver o sonho. A aventura parecia valer a pena. Perdia-me nas divagações. Pensava, pensava, pensava. E ao cansar de pensar, refletia.

Deixar-me-ia levar pelas imaginárias movimentações dos sonhos, não fosse o inesperado e súbito apito da campainha. Um tanto assustado, fui até a porta, agradecendo pelo barulho que me tirou da lua e me trouxe de volta à realidade. Dela, observo pelo olho mágico, em direção ao corredor, e não há ninguém. Olho novamente, angustiado, e decido esperar.

Quando estive próximo de desistir, pelo canto esquerdo, vinha em direção da escada uma mulher corpulenta, com sacolas de supermercado em ambas as mãos. Era minha mãe. Voltava do serviço e havia tocado a campainha e voltado as escadas para buscar as sacolas. A intenção era a busca pela minha ajuda, inutilmente.

"Ajude sua velha mãe, ao menos uma vez!", ela resmunga enquanto empurra a porta com as pernas. Não entendia. O que fazia ela no meu apartamento? É então que me lembro: fora eu quem a convidara. Queria sua presença por perto nestes dias. Sentia sua falta, apesar de viver só há algum tempo.

Peguei as sacolas que restavam no lado de fora e, entrando, deixei que a porta se fechasse por conta. Segui-a pela cozinha, deixando as compras pela mesa, tentando entender seus movimentos. Ela estava agitada, parecia confusa. Ainda não se encontrava naquele espaço, não se dava bem com minha casa.

Pediu-me pelas facas e a tábua de corte. Dei-as em sua mão, e voltei à sala. A poltrona, sempre convidativa, chamava-me para mais pensamentos, mas eu não a queria agora. A menina devia ficar para depois. Havia algo a se fazer. Deveres a cumprir, imensamente maiores que qualquer casualidade romântica.

Depois de colocar a carne no fogão, mamãe veio a ter comigo na varanda. Sentávamos em cadeiras de balanço junto as flores que conseguia cultivar no apartamento. Ela aproveitou para dá-las água, afinal, ela era conhecida do meu esquecimento.

Uma mulher sábia como era, finalizou com as plantas no momento em que o sol começava a se pôr no horizonte. Algo que a encantava era aproveitar o vento no rosto, balançando, enquanto os olhos fitavam os raios de cor laranja que banhavam a cidade, indicando o fim de mais um dia.

Ela estava contente, mas parecia matutar algo com certa preocupação. Tantos anos de convivência, e ainda assim, ela me era um mistério a ser descoberto, um plano a ser investigado, um enigma que busca, almeja ser decifrado. No mesmo passo em que demonstrava orgulho pela independência do filho amado, perscrutava a si mesma por não ter encontrado por conta própria a razão de minha angústia.

O momento quase se esgotava, quando, então, virou-se para mim: "Filho, diga-me o que há. Sei que algo te passou, conheço-te e tua distração tem nome e sobrenome". Minha mãe sempre sabia onde tocar. Era rápida, ríspida, direta e profunda. Se não a amasse, a temeria.

"A história é fresca. Coisa besta, jovem e inconsistente. Flerta com ilusão adolescente. Mas conto", e perdemos alguns bons minutos assim. Ela me ouvia, muito atenta, e seus olhos iam de um lado para o outro conforme a balança da explicação pendulava.

Ao fim da narrativa, sentia algo estranho, pegajoso e rastejante andando pelos meus dedos. Olho atento para a mão largada pelo braço de ferro da cadeira e avisto, peralta e alegre, uma borboleta que encontrara conforto naquela mão estática.

Suas cores eletrizavam-me. Azul e preto. Era pequena, e não tinha medo. O que ela queria era usar-me de trampolim para a planta do grande vaso que estava próximo. Fui seu ajudante. Peguei-a pelas asas e a levei ao vaso. Ao larga-la, como que plantada no galho, via que se esfacelava. Perdia-se conforme a deixava. Morria na minha frente

Estava cansada. Velha borboleta, ao que parece. Talvez algum animal a tivesse importunado, é impossível saber. Ela estava confusa. Estava perdida. Só queria parar e descansar. Penso eu que tenha contribuído com ela. Só depois que percebi que a borboleta sou eu. Vivo o que ela vive, perco-me conforme ando. E mamãe, numa tentativa honrada, tentou levar-me ao galho da árvore. Eu, contudo, resisti.

Fui o filho teimoso. Fui o abnegado, que ouve o conselho e o esquece. Não sei como não fui antes renegado. A experiência me fala, a história ensina, e eu tapo os ouvidos frente a ela. Seus conselhos eram claros: "Não se deixe enganar. A vida fala por si mesma, só é preciso saber olhar". A verdade é esta mesmo, fui eu quem não quis enxergar.

Despedi-me dela quando papai a veio buscar. Dei a ele um abraço, contei da saudade e então voltei para casa. Tomei um bom banho, tentei relaxar. Fui então para a cama, pois sabia que precisava descansar. Precisava desligar, pois voltava-me a mente aquela garota. Mal sabia que logo no outro dia, voltariam os pesadelos a me atormentar.

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