Novo dia, nova rotina. O café era o mesmo de ontem, de antes de ontem e da semana passada. O pão também. Mas o sentimento era novo. Não fazia sentido tanta vulgaridade nesses rituais. Como é enigmático o amor. Nem mesmo o vivia, mas já havia mudado como vejo o mundo. Faz um homem caótico ver no dia-a-dia a magia da ordem.
Naturalmente, volto a mesma rodoviária onde o ontem eternizou-se. O mesmo ônibus, o mesmo trajeto. A constar, ela não estava lá. É claro que busquei, se é o que você quer perguntar. Procurei por cada banco, a cada segundo, até a inconformidade me tomar. Meus olhos, não querendo aceitar, travaram-se na janela, distraindo-se vendo a vida dos outros passar.
O trabalho, nem por um segundo, quis me ajudar. Não era para aliviar. O intuito era mesmo pesar, pesar nas minhas costas, fazer-me tão ocupado que me impediria de parar para pensar. Como somos capazes de mudar, como nossa alma é capaz de se modificar. Ontem o trabalho era tudo para mim. Hoje, é o que mais impede o sonho de avançar.
A papelada passou, o dia avançou, o almoço acabou, a tarde cessou, e assim, mais um dia. Mais uma parte da rotina. Era evidente que voltaria ao ônibus de sempre. Desta vez, estava ansioso. Era voltando que a havia encontrado. Não fosse agora, não tornaria a ser jamais. O corpo se permitiu até mesmo ficar ansioso. Ao passo que queria vê-la, também temia.
Entro no ônibus um pouco apreensivo, olho aos lados e nada vejo. Sento em um dos bancos vazios perto da catraca. Certo frio sobe pela minha espinha, carregando, com ele, arrepios. Olho para trás enquanto me encaminho para a janela e nada vejo. Já com os olhos tomados pelo desanimo, encosto a cabeça na janela, e fico, imóvel, conectado com o movimento.
Os pontos de parada pareciam caminhar. As cores do céu já iam se desfazendo, o azul enfraquecendo, o amarelo alaranjando. Sinto, então, uma movimentação ao meu lado, para onde olhei, quase imediatamente. E, é claro, era ela. Ela voltou, e não somente. Voltou e veio a mim. Buscou-me, e me encontrou.
Parecia mais linda do que quando a conheci. Mais viva do que quando a vi pela primeira vez. Mas era ela. Eram os mesmos cabelos loiros, as mesmas mechas claras e os mesmos olhos cor de mel, que estavam ainda mais doces. Perguntou se poderia me acompanhar na viagem, e deixou escapar aquele sorriso, de vermelho profundo e branco marcante. Uma súbita paz chegou ao meu coração. Mesmo se quisesse, mesmo se pudesse, mesmo se devesse, jamais teria conseguido negar.
Olhou-me na profundidade da alma, deixou que seus olhos se conectassem aos meus, para então dizer: "Quero que me perdoes pelo que fiz ontem. A realidade é que eu estava tão fragilizada, tão quebrada que não queria ser vista daquela maneira. Não queria que a impressão que tivesses de mim fosse aquela. Achei que você merecia mais."
Acabou, não é? O que mais precisava ser dito? Tudo fora feito para que eu fosse pego naquele momento. Respirei fundo, olhei para cima, e voltando a ela, respondo: "É você quem merece mais. Tudo que fiz foi tentar ajudar."
"Foi o que você fez, te garanto. Não fosse você, não sei dizer o que teria acontecido. Se tivesse sido invisível para ti como fui para todos os outros que passaram, talvez até eu mesma tivesse me esquecido."
"Deixe-me confessar algo: encantei-me contigo desde o primeiro momento. Você parece ser alguém singular, única, uma pessoa como nenhuma outra. Tem compromisso marcado hoje? Poderíamos ir a um lugar para conversar."
"Tenho um compromisso importantíssimo e inadiável. Ir para onde for preciso com você. Tens alguma ideia?"
"Conheço um café que fica perto da próxima parada. Você topa?"
"O que estamos esperando?", ela sorri, e devolvo, sem saber muito bom como lidar com a situação.
O ônibus para e saltamos. Peço a ela que me acompanhe por entre as multidões que caminham como legiões de mortos-vivos nas cidades. Íamos na contramão de todos, e por isso, ofereci a ela a mão, de maneira a impedir que nos perdêssemos – claro, a motivação real era buscar intimidade, mas o motivo prático engana os desavisados.
Ela acolheu a tentativa, tendo, pelo sorriso que deu, entendido a pequena malícia no meu ato. Juntos, continuámos, inseparáveis, até chegar ao café. Quando entramos, a luz do sol começava a deixar-nos. A noite começava a vir e as temperaturas a cair.
A conversa foi mágica. Tanto foi dito sobre ela, tanto foi revelado sobre mim. Dizem que as verdadeiras conversas são aquelas pelas quais conhecemos ainda mais nós mesmos, e foi este o caso. Para que entendam, confesso o seguinte: o assunto tomou tanto minha atenção que nem mesmo me lembro o que pedimos. Lembro vagamente que a comida era maravilhosa. E somente isso.
Há algo, contudo, que jamais esquecerei. Quando deixamos a cafeteria, ela buscava um taxi. Assim que o encontrou, virou-se para mim, enquanto segurava minha mão, e se aproximou. Passou o braço por mim, envolveu-me nela e beijou-me. Nossos lábios se encontraram como velhos conhecidos. Arrepios subiram por cada pelo do meu corpo. O suor frio congelou. O que sei é que todo o cosmos parou por alguns instantes.
Por alguns momentos, tudo pareceu estar completo. A vida pareceu ter sentido. A existência pareceu ter propósito. Se em algum momento de minha vida eu havia duvidado da existência de um Criador, nesse momento a dúvida tinha sido destroçada. Tudo estava em seu perfeito lugar. Talvez eu tivesse vivido até então apenas para o prazer daquele momento.
Quando finalizou, abraçou-me como se nunca quisesse me soltar. E retribui, mostrando que queria ficar ali de uma vez para sempre. Que, a mim, se a eternidade fosse um instante, seria aquele. Fomos nos tocar do que estava acontecendo quando o taxista buzinou, mostrando sua pressa. Ela passou a mão em meu rosto e sorriu.
Virou-se para a estrada e foi na direção do carro. Não voltou a olhar para trás. Eu, por outro lado, acompanhei cada segundo de sua movimentação. Ao partir do taxi, tomei rumo em direção à estação. Volto para casa acompanhado de um sentimento de imensidão.
Todas as estrelas que brilham no céu congratulavam-me conforme por elas passava. Já não me preocupava à maldade no mundo, queria saber era das alegrias. Há muito havia esquecido que as pessoas buscavam a felicidade, e até no simples, encontravam motivos para sorrir.
A solidão da rotina, a incompreensão do trabalho, a vicissitude grandiloquente do bon vivant, tudo havia desaparecido frente à inigualável sensação de ser amado. Toda sangria, desigualdade e maldade universal parece pequena quando comparada a magia e a leveza de um bem viver.
Sorria a todos que passavam na rua, cumprimentando com uma animação nunca antes vista em mim os conhecidos com quem esbarrava. Quase que saltitava enquanto caminhava em direção à casa. Lá, banhei-me e até na cama sorria. O mundo todo me percebia, eu finalmente vivia.
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