Indo ao rio

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– A mãe brigou comigo por causa da nota. – Suspirou Mocinha quando a gente se encontrou para brincar no sábado.

– Eu vou estudar agora toda noite até o óleo da lamparina apagar. – Disse me deitando em um galho grosso do pé de siriguela.

– Estou feliz com uma coisa: as férias vão logo chegar. – Falou Mocinha também subindo na árvore.

– Eu não tiro férias. – Olhei para ela.

– Talvez sua tia deixe você ir com a gente até o rio. – Disse Rita esperançosa.

– Seria legal.

– Maravilha! – Mocinha bateu palmas. – A mãe vai bem cedo lavar roupa e a gente vai depois levar o almoço.

– Não sei não. Acho que titia vai achar perigoso.

– Não somos mais criancinhas, Cora! Podemos muito bem cruzar a linha de trem sozinhas.

– Não é só porque não temos mais dez anos que não sejamos crianças.

Mocinha revirou os olhos, Rita apoiou o queixo nas mãos rindo e disse:

– Acho que se formos juntas ela deixará você ir.

As folhas da árvore pareceram brilhar e acenar que sim.

Titia não pareceu se importar com a ideia já que sua amiga Dona Raimundinha a tinha proposto depois de suas meninas muito insistirem.

– Creio não haver problema algum. – Respondeu ela remendando uma roupa rasgada. – Agora que elas estão de férias podem ter essa ocupação, será saudável, não?

Assim, toda vez que Dona Raimundinha ia ao rio com suas encomendas de roupa para lavar nós íamos levar o seu almoço.

As meninas chegaram por volta das onze horas de uma quarta-feira, eu já tinha acabado com minhas tarefas bem antes do horário combinado pois não queria receber reclamações. Mocinha carregava um embrulho e Ritinha trazia duas sacolas de pano e passou uma para mim. Corri até a sala e avisei a titia que já estávamos indo. No entanto, quando saímos à rua avistamos os seminaristas subindo a rua em fila, voltando de suas aulas para o almoço.

– Volta pra dentro! Volta pra dentro! – Sussurramos, ou gritamos, juntas empurrando uma a outra para dentro da casa e fechando a porta dupla atrás de nós.

Entreabrimos as rótulos e os espiamos. Eles formavam uma longa fila dupla e sombria com suas longas batinas pretas. Observamos até que todos entraram lentamente no prédio do Seminário.

Mocinha colocou a cabeça para fora.

– Acho que acabou.

– Acha que podemos ir agora? Eu tenho medo deles, aquela roupa parece um papa difunto. – Murmurei.

– Mas o que é isso? Ora, papa-defunto? – perguntou Mocinha arregalando os olhos confusa.

Encolhi os ombros.

– Hã, não sei não.

Aquela foi a primeira palavra que veio em minha boca e pareceu combinar perfeitamente com a cena que vira, mesmo não sabendo o que significava. Quando estávamos no sítio à noite os mais antigos sempre contavam histórias de assombrações e coisas estranhas só para nos assustar; deve ter sido lá que ouvi tal expressão.

– Seja o que for eu concordo com você Cora.

– Não deviam dizer isso. Eles estão se formando para serem padres, deviam mostrar respeito. – Falou Ritinha com a firmeza de uma garotinha religiosa de onze anos.

Concordamos de forma submissa recordando o rosário que todo dia à noite rezamos e saímos rumo ao rio sem mais nenhum empecilho. Passamos em frente ao grande prédio do Seminário, com seus portões de ferro, altas janelas com estilo gótico e arcos que formavam um corredor. Meus pelos se arrepiavam toda vez que por ali passava e apertava mais forte a mão de titia, mas agora ela não estava do meu lado para me esconder. Meus passos quase falharam, era a primeira vez que passava sem um adulto na frente daquele prédio e eu tinha que ser valente pois já era uma menina grande de onze anos. Rita e Mocinha também estavam tensas, de mãos dadas, passos lentos, olhos vidrados nas paredes azuis.

Certamente teria pesadelos, e tive. Andava descalça pelo chão gelado da noite e me aproximei de uma janela de vidro, uma assombração toda de petro zanzava pela sala e seus olhos me viram. Saí correndo pelo corredor sem voz em minha garganta para poder gritar. As portas balançavam como se seus prisioneiros tentassem sair, e gemiam. Corri, corri, corri e acordei com lágrimas no olhos. A noite era tão escura e todos os lampiões já tinham se apagado. Ah! Tantas noites que esses pesadelos me assombravam.

À nossa frente, a rua se prolongava até a linha do trem, a areia solta atrasava os nossos passos e fazia o caminho parecer mais longo. Cruzamos os trilhos com cuidado e avançamos rumo ao centro da cidade numa velocidade que pareceu uma eternidade debaixo do sol que só esquentava. Ali, no entanto, já haviam algumas ruas calçadas e o nosso percurso foi mais sereno, passando frente ao mercado central e atravessando a praça do Pax. Felizmente a margem do rio Apodi-Mossoró estava repleta de sombra, algarobas e palmeiras. De longe avistamos várias mulheres ao longo do rio com suas trouxas de roupa suja e barras de sabão de soda, esfregando e torcendo o tecido ou batendo a roupa contra as pedras e depois as estendendo ao sol para secarem.

Sem muito trabalho, encontramos Dona Raimundinha e entregamos sua comida. Ela agradeceu, bondosa como sempre, e disse que podíamos nos divertir sem ir para muito longe. Obedecemos e ficamos por perto, não arriscando por o pé onde a lama era pegajosa. Voltamos tarde junto com as outras mulheres e ajudamos a carregar a roupa limpa. Com a licença de titia, passei o resto da tarde na casa de Dona Raimundinha, ajudando sempre que faltava goma para ela passar as roupas que deviam ser entregues sem falta no dia seguinte.

Com o passar das semanas, o percurso fora ficando mais curto e divertido. Nossa pele se engiava de tanto tempo que ficávamos dentro d'água e o nosso cabelo dava cada vez mais trabalho para desembaraçar.

Os dias se passaram rápido e logo eu já estava no trem a caminho de Governador, onde sempre passávamos alguns dias na casa de primos da família e brincávamos em torno da igrejinha. O dia ainda não havia clareado e eu ainda estava vestindo meu pijama, choramingando com medo do balanço e trupico das rodas pelo trilho. 

As Garotas de Abril (Parte 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora