Titia chegou por trás de mim e passou a mão pelo meu cabelo enquanto eu trabalhava tecendo as varandas e repetiu o que sempre dizia sobre meus estudos. Sua voz estava fraca e seus passos lentos. Em poucos meses a Dona Antônia cheia de vigor e alegria se transformou em uma senhora triste e preocupada. Havia ficado doente e a algumas semanas recebido diagnóstico de câncer. Toquei sua mão e concordei: "Sim, tia. Eu serei uma boa aluna e uma boa filha para a senhora." Ela suspirou alto e saiu. Não deveria ser assim, embora fossem muitos os remédios e chás, sua saúde piorava a cada dia, e a cada dia sua preocupação de ter que fazer uma cirurgia aumentava.
Enquanto ela definhava eu me preparava para começar em uma nova escola aquele ano. Era uma escola maior que todas as outras, ela ainda estava com cheiro de tinta fresca e toda a cidade estava animada com tal construção tão bonita que tinha auditório e tudo mais. Ficava na mesma rua que a nossa casa e de lá dava para ouvir o toque da sirene, bastaria cruzar a praça.
Já a Ivone, que tinha seus vinte anos, não estudava mais. Há vários anos ela parara de estudar, primeiro porque precisou começar a trabalhar para ajudar no sustento da família e depois ela se casou. Ela observava triste sua mãe me incentivar a estudar e ficava ressentida comigo. Eu entendia quando ela não me tratava bem, mesmo achando que alguém seis anos mais velha do que eu não deveria agir assim como uma criancinha. Naquele ano, quando ela entregou a farda nova que havia costurado para mim, pude ver bem de perto sua raiva e desgosto.
- Sua roupa está pronta. - Disse Ivone me entregando a roupa bem dobrada.
- Obrigada. - Sorri o mais gentil que pude, mas sem muito resultado.
Levei a roupa para o quarto e antes de guardar junto com as minhas outras coisas observei o trabalho de Ivone, ela costurava muito bem. Estava tudo perfeito exceto os sutiãs que pareciam dois cones de sorvete, ela devia saber que eu detestava esse formato pontudo e se vingava de mim por fazer assim.
Alguns dias depois a segunda-feira chegou e junto com ela o primeiro dia de aula. Vesti a blusa branca bem engomada e grunhi ao olhar no espelho e perceber que o tecido era mais fino do que eu precisava. Revirei os meus olhos e soltei o espelho sobre a cômoda. Pus as mãos sobre o quadril e olhei para baixo dando um longo suspiro: sapatos pretos brilhantes, meias de cano alto brancas, saia de pregas azul escuro embaixo do joelho, de novo! Bati com o pé no chão. Detestava a saia daquele tamanho, porém tita não permitia que as moças de quem cuidasse se vestissem de forma inadequada. Respirei fundo e passei a escova pelos meus longos cabelos pretos, o que de mais bonito eu tinha, e torci para que titia não percebesse a franja que eu havia cortado. Porém quando estava cruzando a sala sua voz me chamou.
- Cora, espere! - Virei devagar. - Gostei do seu cabelo. Você ficou parecendo uma índia, assim como a sua mãe parecia.
Um sorriso involuntário surgiu em meu rosto e a abracei quase deixando meu material escolar cair.
Parti quase correndo rumo a escola. O vento balançava meus cabelos à medida que andava, agitando contra o meu rosto e me fazendo levantar a mão várias vezes para colocá-lo atrás da orelha. Contudo, não era isso o que mais me irritava. Quase não notei quando minhas duas amigas apareceram do meu lado.
- Cora? Você está neste mundo? - Perguntou Mocinha com voz lenta.
Mordi os lábios e olhei para trás, já estava distante o suficiente para não ser vista de casa.
- Vocês podem segurar isso? - Falei entregando os livros e minha lata com o lanche.
Elas concordaram e pegaram olhando entre si sem entender direito.
Subi rapidamente a saia dobrando o seu cós duas vezes e deixando meus joelhos livres. Suspirei de alívio.
- Agora sim! Estava estranhando você com essa saia de velha. - Brincou Ritinha.
- Você sabe que não sou eu quem faço minhas roupas, a Ivone tenta me castigar dessa forma. E vocês sabem o que titia pensa sobre isso.
Elas concordaram e então corremos até o Estadual ao ouvir o sinal tocar. O colégio era enorme e os alunos se tumultuavam pelos corredores subindo a larga rampa. Procuramos por nossa sala e quase gritamos de alegria ao descobrir que ficaríamos juntas.
Passamos o intervalo explorando a nova escola, que era enorme, quando pensamos que havíamos chegado ao fim do corredor ao encontrar a segunda rampa percebemos que ainda continuava até um pátio distante. Tivemos que voltar às pressas quando o sinal tocou e por pouco não pegamos a porta da sala fechada.
Uma professora alta e magra estava parada em frente ao birô e quando notou que havíamos chegado às pressas e resfolegando ela abriu um sorriso assentindo nossa entrada e fazendo um gesto para que a porta fosse fechada. Ela foi até o quadro negro e escreveu o nome da matéria, "Francês", e toda a turma deu um suspiro de admiração.
- Bonjour à toute la classe. Je m'appelle Collet et je vais vous apprendre le Français.
Uma garota no fim da classe ergueu o braço.
- Oui. - A professora apontou para ela.
- Desculpe-me, mas poderia traduzir o que a senhora disse, por favor?
A professora riu.
- Eu disse: Boa tarde classe. Eu me chamo Collet e vou ensinar a vocês Francês.
- Ah sim! - O som saiu ao mesmo tempo da boca de quase todos.
- Então vamos começar assim... - E a professora pegou novamente o giz e se voltou para o quadro. - Eu irei apontar para um de vocês e perguntar: Quel est ton nom? E vocês vão responder: Je m'appelle... e o seu nome. Tudo bem? - Riscando as frases enquanto falava.
Quando voltamos para casa naquele dia repetimos as frases que a professora Collet havia ensinado e rimos umas das outras tentando fazer os estranhos sons de uma língua nova.
- Não é assim Mocinha. - Disse prendendo as bochechas dela com uma das mãos. - Você tem que fazer um biquinho e dizer "iiii".
E ela não conseguiu dizer mais nada porque desatou a rir, assim como eu e as outras meninas que nos acompanhavam. Quando me recuperei disse por fim:
- Je fatigué.
- Je suis fatigué. - Corrigiu Ritinha dando ênfase na palavra que eu esqueci.
- Só a Geralda para perguntar a professora como se diz: estou cansada. - Riu Mocinha.
- Mas eu estava cansada daquela aula! - Gritou Geralda virando para trás e quando ela tornou a olhar para frente quase esbarrou em uma palmeira e soltou uma gargalhada.
- Pelo menos agora eu posso dizer que estou cansada sem a Ivone me acusar de estar reclamando.
- Ah, a Ivone é tão chata! - Exclamou Mocinha revirando os olhos.
- Ela tinha é que se casar! - Voltou a gritar Geralda, dessa vez sem olhar para nós.
- Mas ela já é casada, Geralda! - Gritei e ela parou voltando-se para nós.
- Hum, é verdade. Então ela deve ter muito medo de você roubar o marido dela.
Ela ergueu a sobrancelha. Engasguei. Mocinha pareceu pensar por um instante.
- Verdade. Cora é linda, já ela...
- Que bulhufas! Ela não deve pensar isso...
- É só uma conjectura, Cora, a gente não tá dizendo que você faria algo. - Disse Geralda.
- Eu tenho quatorze anos!
- Sim. - Ela parecia querer retirar o que tinha dito, mas não sabia o que dizer.
- Todo mundo sabe que ela é infeliz porque parou de estudar. Pronto, é isso! - Salvou Rita pondo a mão em meu ombro.
- Sim. - Repetiu Geralda e virou na rua que ia para sua casa.
Nós três seguimos e as meninas entraram pelo portão de ferro parando atrás do muro baixo para conversarmos mais um pouco. Olhei para a direção da minha casa e vi que Ivone entrava com a cabeça para fora, provavelmente reclamaria da minha demora, e eu suspirei. Era verdade, ela não era bonita, nem alta, nem agradável; sabia costurar muito bem e administrar a casa, mas o que mais? Intrigas, ressentimento, inveja, competições e o que restou? Agora, tantos anos depois, o que resta além de sua lápide no antigo cemitério do centro da cidade e a lembrança da falecida na memória dos que ficam?

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As Garotas de Abril (Parte 1)
RomanceTrês garotas. Três épocas diferentes. O mesmo sangue em suas veias. Parte 1: 1949. Cora perdeu a mãe aos quatro anos e passou a ser criada pela sua tia. Desde então teve que aprender a trabalhar duro e aguentar os ciúmes de sua prima. Será que a vi...