Capítulo 2 - Saice

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Para sempre o evento ocorrido naquela manhã no estado litorâneo pacato ficaria conhecido como "evento espada". Horas depois da ascensão das montanhas, o estado se encontrava encarcerada pelo chão que o sustenta. Ninguém poderia dizer como e porque as montanhas levantaram-se, todos os contatos com o mundo do outro lado da muralha cinzenta foram cortados, o estado se encontrava isolado do resto do mundo.

No mesmo dia a polícia e forças locais fizeram o cerco em todos os municípios possíveis, a população local estava confusa, assustada, e com razão, não poderia haver espaço para pânico, pois senão não haveria como resolver o problema. E justamente neste momento de tenso controle de massas, um evento ainda mais misterioso e sinistro ocorria sob o céu do estado. A nuvem negra, imensa e ridiculamente deslocada entre o límpido e claro céu azul da tarde avançava de forma imponente e assustadora pelo rio São Francisco, sobre a cabeça de centenas de pessoas assustadas.

Lomanto estava curvado sobre sua escrivaninha, escrevia sem parar um artigo para o jornal oficial do estado, era o que fazia quando não corrigia as provas dos seus alunos na escola mais violenta do município onde trabalhava como professor de história. A dor de cabeça, repentina e lancinante o forçou a colocar as mãos na cabeça e curvar se sobre si mesmo, como filósofo e ateu, procurava de todas as formas convencer a todos que existia uma explicação lógica para tudo o que estava ocorrendo, mas o medo e a incerteza crescia cada vez mais entre a população, deixando o terreno fértil para que todo o tipo de forma de certeza desesperada tomasse o lugar da razão, até que a dor lancinante sumiu tão rápida quanto apareceu, e todas as respostas apareceram em sua mente como que caídas do céu, e se estivesse ao ar livre poderia ainda escutar os sussurros da nuvem milhares de metros acima de sua cabeça...

João Barreto, o prefeito, estava numa importante reunião com os representantes de todos os municípios para decidir como agiriam para controlar o medo das pessoas e contornar a situação, todos na sala pequena discutiam acaloradamente para sentir que faziam algo, o prefeito só conseguia pensar numa forma de sair dali e comer uma boa torta doce, foi quando a dor chegou e o atacou de surpresa, arrancando dele um gemido. Todos na sala curvaram-se imediatamente na direção de João meio surpresos, logo a careta de dor dele fora substituída por um sorriso de satisfação, assim que a dor sumiu e veio o esclarecimento, todas as respostas que ele queria caíram do céu...

Carlos Gonçalves, um popular poeta da capital se ocupava em terminar seu novo poema, queria esquecer o alvoroço que acontecia ao seu redor, o medo do desconhecido era seu pior inimigo. Mas logo a dor de cabeça explodiu do nado e o lançou contra a parede, para logo em seguida sumir e vir o esclarecimento que o libertou...

Luís Fernández, professor de educação física, praticava corrida no parque da cidade quando no meio do trajeto a dor o fez parar e recostar numa árvore, logo que a dor passou e a revelação veio, o homem olhou para o céu e sorriu para a nuvem negra que de forma sussurrante cravava imagens em sua mente...

Brendo Cesário assistia ao casamento de última hora de seu genro, que por achar que o que ocorria ao seu redor poderia ser o fim, resolveu se agarrar a mulher o quanto antes. A dor veio de repente, explodindo, mas logo passou e veio a revelação. Mais bem-vinda que nunca...

Ângelo Beiramar, um dos maiores empresários do estado, estava em seu escritório a trabalho, mesmo com o mundo caindo aos pedaços e mesmo no funeral dos próprios parentes, sua sede por trabalho nunca cessava. O pouco a fazer devido a parada que de repente o mundo dera era mais que o suficiente para movimenta-lo. E enquanto fitava a vista panorâmica do sexto andar através da parede de vidro do escritório, avistou a nuvem negra avançando, imponente, em sua direção, cortando o céu azul. Foi então que a dor veio, insuportável, sua secretária correu para buscar água, mas a revelação veio logo, e com ela, uma nova sede que Beiramar nunca sentira antes...

Todos estes homens fitavam o céu e viam a grande nuvem sumir no horizonte enquanto imagens e cenas de eventos que aconteciam e iriam acontecer passavam em suas mentes...

Passara se uma semana e todas as tensões alcançaram o limite. A distribuição de água e energia do estado foram cortadas misteriosamente, a falta de abastecimento, escassez de recursos importados de suma importância somadas ao fato de que as autoridades não conseguiram resolver o problema das montanhas, tudo isso fez com que a população beirasse o pânico e a confusão e que as mais mirabolantes teorias apavorassem as comunidades, espalhando se como doenças. A polícia e outras milícias perdiam cada vez mais força sobre a situação.

Foi neste cenário que eles apareceram. Cinco homens de regiões diferentes, mas espalhados seguindo a rosa dos ventos, acumularam em poucos dias, milhares de pessoas, povoado por povoado, município por município, cidade por cidade, e logo eles se viram cada um, nas direções da rosa dos ventos, diante de imensas multidões, atraídas tanto por sua fama e influência quanto pelas suas palavras de consolo.

- Não precisam mais se preocupar com o mundo exterior, nem com seu futuro, ou o de suas crianças e netos. O mundo lá fora está agora completamente isolado de nós e há um motivo, - diziam eles em uníssono, em frente as grandes multidões de pessoas que espalhariam sua mensagem para todo o resto - as montanhas há muito esperavam o momento em que despertariam da terra, e agora que se ergueram, não irão mais nos deixar. Somos nós os seis arautos. Se sentirem medo, solidão ou desamparo antes, não sentirão mais. Se permitirem, nós os guiaremos neste novo mundo que despertou depois de tantas eras...

Medo. Incredulidade. Confusão e desespero começaram a se espalhar pelas multidões na mesma hora em que os arautos começaram a contar sua história, mas que não reinaram por muito tempo nos corações perdidos daquele povo. Por mais fantástica que fossem suas histórias, os seis homens convenceram a todos com suas proezas, transformando incrédulos em toupeiras diante de todos em plena luz do dia e criando imagens holográficas com a poeira do próprio chão. Eles contaram que criaturas celestes os convocaram e agora, o fim da era em que viviam naquelas terras acabou, que uma nova civilização seria construída com os escombros da primeira, e que um poder muito antigo, que apenas pessoas de aura forte conseguiriam controlar, retornaria a se espalhar pelo ar, pela terra e pela água, como uma parte extra da natureza, algo mais poderoso que qualquer outra coisa. Com este poder que os arautos regeriam aquela terra, sob a supervisão dos seres "maiores".

Foi assim que uma terra mais primitiva e simples foi nascendo, adaptada àquela situação inusitada. Os habitantes, pouco a pouco se assombrando com as histórias e habilidades estranhas dos arautos, começaram a se ajuntar num grande mutirão e deram início a construção de um novo mundo. Com toda a madeira em marcenarias e até mesmo em construções e moveis velhos acumulados, começaram as construções de grandes cercos ao redor do rio. Carroças ocupadas com todo o tipo de materiais que se podia imaginar dominavam as estradas de terra e asfalto. No centro urbano do estado, começa uma demolição em massa de prédios baixos, num exercício improvisado pelos arautos, já que as maquinas eram de menos para construções de mais; vinte homens em cada lado seguravam uma imensa e pesada corda onde uma esfera de metal no centro era chocada contra as colunas principais de cada edifício. De três em três, fazendo com que um caísse em cima do outro igual lenhadores fazem em arvores muito grandes. Homens e carroças era a visão comum com restos do concreto e rochas sendo levadas para o norte.

Nesta desconstrução, Carlos Gomes, o arauto renomeado Kamil, liderava as obras mostrando como reaproveitar cada material da antiga cidade, orientando outros mestres de obras, e também os ferreiros. Com a ajuda de trenós de madeira eles arrastavam as pesadas rochas por estradas banhadas em sabão e óleo. Os metais acumulados eram levados até covas onde eram jogados e então, queimados até se fundirem e caírem em tanques mais profundos, onde seriam reaproveitados, entre carcaças de automóveis e peças variadas.

Em seis meses, três novas cidades foram construídas por cima das anteriores, leis novas foram escritas pelos arautos para reger o povo daquela nova terra, mais três cidades estavam em construção e cada uma estava sob comando indireto de um arauto e diretamente por um líder eleito pelos habitantes de cada região, e assim que ficaram prontas, os arautos tiveram sua própria torre construída, que ficaria conhecida como palácio das rosas.

Dois anos depois, seis cidades estavam formadas: Gaia, Karyu, Soma, Bilhar, Saron, e a maior de todas elas, Súlfuro, liderada pelo arauto Shot, ou Ângelo Beiramar

E assim começou a história de um lugar cheio de mistérios e perigos jamais imaginados possíveis, sobre um antigo estado comum, o reino de Saice.

Fique coração, Neste Mundo QuebradoOnde histórias criam vida. Descubra agora