O primeiro encontro

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Vozes gargalhavam e cantavam, copos se chocavam contra as mesas e o ar cheirava a suor, gordura e mofo.

O baixo, porém largo salão, sustentado por grossas colunas de madeira negra e iluminado por algumas tochas e velas espalhadas pelas mesas e paredes estava como sempre cheio de toda sorte de marginais: Aventureiros, ladrões, saqueadores, assaltantes e estupradores se misturavam enchendo suas barrigas com bebida barata, carne dura, pães velhos e seus ouvidos com histórias de feitos exagerados e relatos e informações de alvos e trabalhos.

Como sempre eu estava sentado em um dos cantos sem mesa e em uma cadeira velha e desnivelada. Desde que escapei do ataque a minha vila aquele era o ponto em que me encontrava dia e noite em minha solitária e silenciosa lamentação, tentando ao máximo não ser notado a menos que fosse pelo taberneiro. Não me restava nada mais nessa vida além de gastar o dinheiro que recolhi antes de fugir e gastá-lo me afogando na bebida barata enquanto esperava que a morte chegasse da forma mais piedosa possível. O pouco que tive na vida me havia sido tirado, mas já não era muito dado que eu era um mercador falido sem família, amigos ou amante.

O dinheiro estava acabando rápido e a chance de conseguir mais era tão ínfima quanto a de que chovesse nessa poça de lama no meio de tão árida terra. Meu futuro era obscuro e mórbido a esse ponto.

Repentinamente a porta foi escancarada, com força o suficiente para momentaneamente apagar algumas das velas e tochas, antes que suas chamas voltassem a crescer. Diversos olhos correram em direção a quem entrava agora no recinto e mãos seguiram do cabo das canecas para os cabos de facas e porretes. Um homem, aparentemente um velho maltrapilho, uma visão rara, curvado, coberto completamente por uma capa velha, da cabeça aos calcanhares. Mesmo estando curvado, o homem era estranhamento alto. O homem se arrastou em direção ao bar, visando o dono da taberna, seus olhos não eram visíveis sob o cabelo seco e azulado que descia da testa até o nariz, mas eu senti um calafrio como que se tivessem passado por mim. Ele se inclinou sobre o balcão para chegar mais perto da altura do dono, um careca magrelo de olhos afiados, e com uma voz rouca, baixa e extremamente grave falou:

- me foi dito que um salteador de alcunha "O fazedor de órfãos e viúvas" esgueirou-se entre os dedos de um mercador rico, e deixou seus bolsos mais leves. Me foi dito também que agora esse mercador lhe pôs uma farta recompensa sobre a cabeça...

- Você diz, Lancaster? Se for esse mesmo, sim. Existe uma gorda recompensa para quem separar sua cabeça do resto do corpo. De que lhe interessa?

O barman falava de forma arrogante. Já tinha servido o tal Lancaster antes junto de sua corja. Reconhecia um bando de homens sanguinários e belicosos com facilidade e aqueles eram alguns deles. Eu mesmo já os vi de relance nesse mesmo bar, não gostaria de cruzar seus caminhos, o mais tortos que fossem. Sei que nenhum dos homens que o fizeram mantiveram ossos inteiros o suficiente para voltar a andar ou sangue para ter mais cor que uma nuvem. Não, ele era um carniceiro e respeitado por todo marginal por isso. Seu bando era grande, suas táticas desalmadas e seus métodos eficientes. Ser um alvo seria o mesmo de ser um defunto. Boa parte das pequenas cidades no deserto perderam suas rotas de caravanas por culpa do mesmo.

- Independe do que irá fazer, a oferta de recompensa veio dos muros de Centreluce, o único forte a norte daqui, duvido que qualquer um de nós seja permitido a entrar nele de qualquer forma.

Alguém do bar ouviu a resposta do dono e rindo fez questão de confirmar o quão real era tudo o que se falava de Lancaster.

- O que lhe interessa que ele tenha ou não uma recompensa? Um mendingo grande como você pode até bater um cachorro com um pau, mas não espere que seja o mesmo sobre um leão. Não gaste sua sorte correndo atrás de recompensas que o levarão a morte e se aposente.

Outras vozes afirmaram o terrível futuro que esperava pelo homem, algumas rindo como de uma criança que sonha em ser um rei, tendo nascido um escravo, outros com real raiva, possivelmente já tinham cruzado o caminho de Lancaster e escapado por pouco, e sentiam-se ofendidos pela audácia do homem de querer ser melhor que eles.

O homem não respondeu, apenas retirou uma das mão, as quais eram enormes e esqueléticas, de dentro da capa, segurando algo enrolado em um pano sujo e manchado de sangue. Houve um momento de silêncio enquanto ele o colocava sobre o balcão e o pano caia.

- creio que esta cabeça lhe pertencia, apenas não pude trazer o que restou do corpo para dentro.

Sobre o balcão estava a cabeça de um homem respeitado por boa parte e temido por todos naquele salão, semi desfigurada e com um olhar de terror nos olhos.

Um burburinho começou entre alguns dos clientes e repentinamente enquanto urravam, vários dele se lançaram sobre o homem enquanto puxavam suas lâminas e porretes, passando por cima das velas nas mesas trazendo o breu para o ambiente. Gritos, choques de aço, madeira e punhos foram ouvidos. Eu me escondi ainda mais para o canto onde estava, era certo que alguém sairia morto e muitos outros, feridos. Estava certo que o homem jazia morto abaixo da massa humana que tinha se tornado aquilo e que a violência desenfreada pararia apenas quando sobrasse um último capaz de levar a cabeça consigo. Sim, eles não estavam lutando pela honra de um companheiro caído, mas pelo dinheiro que viria ao entregá-la ao tal mercador, dinheiro com o qual eu nunca conseguiria sonhar ou mesmo imaginar existir, mais que o suficiente para reconstruir minha pobre vila e torná-la em uma fortaleza do deserto.

Repentinamente, silêncio. Foi cessado todo som de golpes e gritos ou resmungos de dor ou raiva. Uma vela foi acesa pelo dono da taberna. Uma pilha, não apenas alguns, mas todos os clientes, todos mortos no meio do salão. Cadeiras e mesas destruídas e arremessadas por todos os lados, membros cortados e rasgados espalhados por cima dos destroços, e sentado sobre os corpos, tal qual um leão tomando sol, estava o homem que foi o motivo de toda aquela matança, pintado do sangue de todos e talvez o seu próprio, seus dedos ainda segurando a cabeça esmagada de alguém. Sim, esmagada! Como uma maçã podre ou Deus sabe lá o que poderia ser amassado em uma forma tão grotesca. A cena me revira o estômago e ao mesmo tempo me enche de temor e respeito até hoje.

O homem então limpou suas mãos em algum trapo de algum dos corpos e começou a se direcionar para a saída, quando falou em direção ao dono do bar que se encontrava praticamente catatônico com a visão, assim como eu.

- perdoe-me pela bagunça e todo o gasto limpando e arrumando. Sinta-se a vontade para utilizar o dinheiro que eles levavam para isso.

E com isso o homem saiu.

Passei alguns segundos parado sem compreender aquilo, como que o cenário em questão de minutos mudara tanto, meus ouvidos ainda tentando entender o repentino som de como que uma batalha entre dois exércitos poderia tornar em um silêncio tão fúnebre. Após esses segundos eu por algum motivo que até hoje desconheço, lancei-me em direção a porta e segui o homem após encontra-lo Andando em direção ao deserto. Não tinha um cavalo, um camelo, uma carroça, nada. Pretendia aparentemente cruzar o deserto a pé.

- s... Se me der um décimo da recompensa, eu o levo até lá em minha carroça!

Me assustei a ouvir a voz, pois era a minha própria. De alguma forma havia convidado o homem, que acabara de fazer uma chacina, para me acompanha pelo deserto.

Ele se virou e se aproximou e me olhou dentro da alma. Sua face era queimada pelo Sol e seus lábios e olhos incrivelmente secos e rachados, quase como que de alguém que fora abandonado no deserto para morrer. Porém sua voz era grave e sem falhas, como uma tempestade.

- Aceitarei sua proposta.

Nesse momento o sangue me desceu para os pés e me arrependi do momento que minha mãe me pariu, minha vida medíocre teria um fim que eu nunca iria esperar, mas seria cedo ou tardio?

As Crônicas do Rei: O Homem Que Se Levanta No DesertoOnde histórias criam vida. Descubra agora