A viagem foi tão maçante quanto qualquer uma cruzando o deserto seria. Como esperado, o estranho não era muito a fim de papo, porém o tempo todo parecia mais como uma estátua de bronze do que como um humano. Eu realmente me forçava a acreditar que ele era um humano, apenas maior que qualquer outro. Ouvi da existência de reinos de homens grandes e fortes como cavalos, mas ele ultrapassava qualquer um dos rumores e relatos, mesmo o mais inacreditável deles. Passava o dia e a noite sentado na parte de trás da carroça, olhando para o nada com seus olhos secos e profundos. Cheguei a pensar que estava morto, porém duas vezes por dia quando parava a carroça, ele se levantava e dividia a comida e o vinho quente comigo. Apenas uma vez ele disse algo: estávamos já no meio do caminho e era o fim da tarde, em breve parariamos para descansar e dar água para os bois. Ele sem olhar para mim, ainda olhando para o horizonte disse naquela voz assustadora como o rugido de um leão velho:
- pare a carroça. Já não estamos a sós.
Eu me assustei com a fala repentina, ainda mais porque nas duas únicas vezes que tentei falar com ele, sobre comer ou beber, ele apenas acenou com a cabeça. Eu não sabia se confiava nele ou não, então acabei parando a carroça. Não importava para mim o que ele fizesse, já que se quisesse me matar, teria feito a tempos.
- fique encima da carroça e a mantenha travada.
Eu obedeci a ordem. Pus as travas entre as rodas e subi para a carroça. No momento em que me sentei nela, o chão começou a tremer. Eu sabia o que era, qualquer um que vivesse nesse território sabia. O demônio em pessoa tinha vindo nos buscar e tragar para debaixo da areia. Estávamos condenados e nem mesmo rezar teria utilidade, nunca teve afinal todos esses deuses estão mortos desde que foram criados. Me restava apenas amaldiçoar as areias que me tragariam como haviam feito os que morreram nela antes de mim.
- se abstenha de gastar sua energia amaldiçoando quem quer se seja o alvo de sua raiva, isso irá apenas atrair a atenção para ti.
O homem estava de pé, como se todo o tremor fosse apenas o mesmo que um esquilo poderia gerar ao pular. Havia puxado algo de sua capa: uma espada, ou o que tinha sobrado de uma ao menos. O cabo era longo como uma perna, a lâmina partida em diferentes pontos, como cerâmica estilhaçada, porém do tamanho de uma espada comum e com o dobro da grossura e tinha uma tonalidade negra, como se o próprio céu noturno tivesse sido forjado, claramente não era feita de bronze. Era um metal mágico, tão negro e brilhante que devorava qualquer luz que o tocasse.
O sol estava se pondo no horizonte enquanto eu me escondia na carroça debaixo de alguns trapos, então não pude ver muito do que aconteceu em seguida. Mas o chão se abriu e uma coluna gigantesca saiu dele, mas não era uma coluna de pedra ou barro, era de carne. Um enorme corpo cilíndrico saiu do meio da areia e se arremessou em direção ao homem com o que parecia uma boca completamente aberta. Os movimentos do homem por um segundo pareceram lentos e leves, quase como se empurrado pelo vento. Tudo que vi foi seu braço se erguendo e sua espada descendo em um corte transversal em direção aquele enorme verme, o qual caiu encima do homem, o cobrindo como um saco voltando para dentro da areia. E então... Fissuras começaram a aparecer, em todo o corpo do verme. Ele não se mexeu mais, mas pedaços de sua pele e carne começaram a cair. E de repente, aquela bizarra coluna desmoronou como uma pilha de tijolos empilhados sem nenhuma massa os prendendo juntos contra o vento.
Mais uma vez, o homem estava coberto por sangue, mas dessa vez de pé no meio da pilha de carne.
- C... Como??
As palavras em minha mente saíram pela minha boca novamente sem que eu controlasse, era uma cena inacreditável. O que era ele? Um daqueles deuses de madeira e metal? Um anjo? Um demônio?
- Essa carne...
A voz do homem me fez tremer todos os ossos, ele estava facilmente a vinte braças de mim e mesmo assim eu senti como se falasse ao meu ouvido.
- Pegue o que puder dela, é comestível e seca...
Ainda tremendo eu desci da carroça e a trouxe até a pilha, guiando o cavalo atrás de mim. De alguma forma aquele filho de uma egua não fugiu ou mesmo se assustou e até mesmo parecia se sentir confortável perto do homem.
A carne era rosada como de peixe, mas parecia não ter água quase nenhuma nela. A textura era molenga como de gordura. Ao menos o cheiro não era ruim, já havia comido coisa mais mal cheirosa. O principal cheiro era de areia afinal.
- Bem... Parece que terei um bom tempo pra empacotar essa carne toda, já está de noite afinal. Não tem perigo de sermos atacados por algum animal que sinta o cheiro dessa carne toda?
A situação parecia tão inimaginável que eu já nem me importava mais em sentir medo. Um ser monumental acabara de ser morto na minha frente por um homem de aparência frágil apesar da estatura, e apenas utilizando uma espada quebrada. Certo certo, a espada com certeza era mágica já que não existe nenhum metal tão negro quanto carvão mas tão metálico e refletivo quanto bronze afinal.
A resposta do homem foi apenas limpar sua espada com um trapo da carroça e sentar-se na areia encostado a carroça.
- bem... Acho melhor começar então...
Quem diria? "Durante a vida, comemos todo tipo de animal, mas no fim dela, os vermes que nos comem" acho que não mais: agora comerei vermes durante a vida também.
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As Crônicas do Rei: O Homem Que Se Levanta No Deserto
Phiêu lưuNo meio de um deserto, debaixo de uma pedra, um homem, magro, abatido, com um olhar morto se estende para o sol depois de incontáveis passagens de tempo. Na cabeça, uma coroa de lata pela metade, na mão, uma espada quebra e sobre o corpo esquelético...