Sempre tivemos o cuidado de manter nossa casa trancada. Evitávamos dar qualquer brecha àqueles nóias. A qualquer hora do dia, eles passavam aqui em frente. Estavam indo numa biqueira aqui da rua. A casa não tinha número. Digo, dos três dígitos, sobrou apenas o seis. Os outros não deveriam fazer falta. A final, que utilidade teria o endereço completo de uma boca de fumo?
O lugar era bizarro. Não apenas por conta daqueles que o frequentam. Mas a atmosfera, como um todo. Uma simples grade separa o interior e a rua. De fora, é possível observar um corredor escuro, com cerca de quatro portas. Não sei exatamente. E perturbador olhar lá para dentro por mais de cinco segundos. Volta e meia, um infeliz atravessa de um cômodo ao outro e troca um olhar vazio com o exterior. O curioso é que, nunca, na minha vida aqui, vi alguém sair dalí. Apenas entrar. Não sei quem é o responsável por abrir aquela grade fria. Faço o possível para não estar na rua nos horários em que esses sujeitos passam.
Meu quintal faz fundo com esse buraco aí. Daqui de casa, é possível ver uma gigantesca parede, outrora branca, mas que agora está manchada de cinzas. E também, o telhado, já muito velho, parcialmente queimado e destruído. Algum problema interno que houve nas acomodações. Um incêndio se alastrava. A madeira velha ardia com vigor, o mesmo que toma conta de uma criança no momento de catar doces no chão, logo após arrebentar uma pinhada.
Acredito que, se não fosse eu, aquele lugar teria virado pó, assim como qualquer vagante que alí estivesse. O telhado em chamas estalava tão alto que me despertou, no meio da noite. Liguei para os bombeiros. Logo eles chegaram. Tiraram os infelizes lá de dentro e apagaram o fogo. Vieram aqui em casa, inclusive, para que tivessem uma visão panorâmica do lugar.
Hoje, alguns anos depois, me pergunto se não deveria ter deixado aquele lugar arder até o dia seguinte, deixar que as chamas atingissem proporções colossais, se comparadas a um bairro de classe média baixa. Me pergunto se, naquela noite, eu não deveria ter permitido que a coluna de fumaça levasse aquelas entidades que habitavam a casa 6xx. O fato da casa possuir uma margem grande de numeração, e que estranhos entrassem e nunca mais saíssem, gerou uma lenda aqui no bairro. Alí, seria um portão para um purgatório. As almas perdidas entrariam ali e sofreriam, por tempo indeterminado. Presas entre paredes sujas, um chão de madeira podre, cômodos carentes de luz do Sol. Simplesmente um lugar onde a vida se exauriu, não restando nada além de almas penadas alheias ao próprio sofrimento.
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Era uma vez... Um curioso.
Short StoryA curiosidade matou o gato, dizem. Mas, o que ela fez com o ansioso?