Capítulo II

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"Rita, acorda! Ouvi a tua mãe dizer que te vem acordar, faz lhe uma surpresa e levanta-te, ela irá pensar que és crescida e te consegues levantar sozinha."

"Bom dia Clara!"

"Bom dia!"

"Onde estiveste esta noite?"

"Não saí daqui."

"Como sou eu a dormir?" -perguntou-me curiosa.

Demorei a responder.

Rita é uma criança inteligente e questiona tudo. Conheço-a muito bem e por isso já sei como a abordar quando ela me faz perguntas. Na escola a Rita não se dá muito bem com a professora e com as outras crianças e deve-se em parte ao facto de ser muito ingénua e perguntar tudo o que lhe vem à cabeça.

"És calma, tal como acordada." -respondi-lhe.

"Rita acorda que já são... Já estás acordada?"- perguntou Maria a sua mãe.

"Sim, a Clara acordou-me."

"A Clara?!"

"Sim."

"Quem é a Clara, Rita?"

"A minha melhor amiga!"

"Da escola?"

"Não."

Rita não consegue perceber a diferença entre amigos imaginários e reais e não percebe que ela é a única que consegue ver-me.

Maria saiu do seu quarto fechando a porta atrás de si e foi acordar o André sempre mais dorminhoco.

"Porque é que a mamã não acredita em mim Clara?"

"Porque ela não consegue ver-me." -expliquei-lhe.

"Mas tu és real, não és? Eu consigo ver-te e falar contigo!"

"Rita, eu sou tua amiga, mas só tua. A tua mãe não é minha amiga e por isso não consegue ver-me ou ouvir-me ou até falar comigo. Eu sou especial e só falo com pessoas especiais, como tu."

"Está bem. Hoje quero ir de cor-de-rosa para a escola." -disse-me por fim

"Saia ou vestido?"

"Saia e quero a minha camisola da Princesa Sofia."

"Queres as sandálias brilhantes ou as sapatilhas que dão luz?"

"As sapatilhas. Quero mostrar a uma menina na escola que não é a única que tem. Ela é má."

A Rita é muito feminina. Gosta de mostrar as pernas, usar colares e calçado brilhante. A sua cor favorita é cor-de-rosa e todos os dias pede-me que lhe prepare a roupa. Tento agradá-la sempre que posso, mas por vezes ela não tem noção das estação em que está e por isso é a sua mãe quem a veste.

"Porquê que dizes que é má?"

"Porque não gosta de mim."

"Porque não gosta de ti?"

"Porque diz coisas sobre mim que não são verdade."

"Que tipo de coisas?"

"Não me faças perguntas. Não gosto de testes."

"Pronto , está bem não pergunto mais nada."

"Vou tomar o pequeno-almoço, desces as escadas comigo?"

"Sim, não te preocupes."

É-lhe difícil compreender que as crianças são competitivas e podem chegar a ser desagradáveis. Rita está habituada a que todos sejam bons e simpáticos com ela e por isso ela diz que não gosta de ninguém na escola. A não ser a Sr. Collins, uma psicóloga estrangeira muito simpática que passa com a Rita todas as tardes de sexta-feira. A Sr. Collins é a única que acredita na minha existência e ajuda Rita a enfrentar a escola.

Rita tem muitos problemas em diferentes situações. Primeiro odeia que lhe façam demasiadas perguntas pois compara-as a testes e isso baralha-a e deixa-a nervosa e inquieta. Depois odeia que a deixem sozinha, especialmente eu, daí eu passar as noites todas sentada ao seu lado.

"Crianças! Para a mesa! As torradas estão feitas!" -conversa matinal típica do pai de Rita, João.

"Para o lanche quero pão com manteiga." -disse o Tiago.

"Eu também."-disse Rita.

"Eu prefiro com fiambre."-foi André quem disse.

"Então, são duas sandes de manteiga e uma de fiambre. E tu Sofia?"

"Pode ser manteiga, pai."

"Vou já tratar disso. Comam. O leite já está aquecido. Tiago, podes tirar as canecas do microondas?"

"Está bem."

Todas as manhãs há muita agitação. Maria é a primeira a sair porque tem de atravessar a cidade para chegar ao trabalho e por isso costuma levar mais cedo o Tiago e a Sofia. O André e a Rita vão com o pai e costumam ver o canal Panda de manhã enquanto terminam o pequeno-almoço.

"Meninos estamos atrasados. Despachem-se. Não se esqueçam dos casacos e das mochilas."

"Sim pai." -responderam eu conjunto

"Entrem no carro e ponham o cinto. Não sei da chave, deve estar lá em cima."

"Sim pai."

"André, ajuda-me a pôr o cinto por favor."

"Ó Rita, não sejas burra."

"Mas eu não sou burra, ajudas-me ou não?"

"Quem não sabe por o cinto é burro."

"Não sou burra... Não sou!"

"Todos têm cinto?" -perguntou o pai.

"A Rita não tem."

"Pai, o André chamou-me burra."

"André pede já desculpa à tua irmã."

"Mas ela nem o cinto sabe pôr."

"Então, em vez de lhe chamares burra, ensina-lhe."

"Oh! Está bem. Desculpa Rita."

Sempre que há problemas entre os gêmeos, costumam abraçar-se ao fazerem as pazes e desta vez também o fizeram.

Chegamos à escola 3 minutos antes da campainha tocar.

Foi um dia aparentemente normal. Rita só falou comigo quando chegamos a casa.

"Clara, achas que sou burra?"

"Não, claro que não."

"Mas o André disse que só as pessoas burras é que não sabem apertar o cinto."

"O André tem melhores notas do que tu só por saber pôr o cinto?"

Não respondeu. Não gosta muito de perguntas compridas, apesar de eu não perceber porquê.

Sei que Rita ficou a pensar no facto de ser ou não burra porque foi dormir cedo sem dizer uma única palavra sem dizer o "boa noite Clara!" como faz todas as noites.

Até que me esqueçasOnde histórias criam vida. Descubra agora