A semana passa rapidamente e eu não consigo me focar em absolutamente nada. Meus conceitos sobre mim mesma estão baixíssimos e eu mal quero olhar minha cara envergonhada no espelho. Para relaxar, combinei com Catarina de fugirmos na madrugada de sexta-feira para o pátio enquanto todos estavam dormindo. Não iríamos fazer nada de mais, só sentar, conversar e ver as estrelas sem ter que dar satisfação, sem todas aquelas meninas aglomeradas e gritando o tempo inteiro.
Nós estávamos preparadas para ocasiões como essas. Vivi tanto tempo escapando com Amélia e Juliana que reservei um lençol para as fugas noturnas que eu estendia em um cantinho acimentado próximo ao jardim.
Catarina e eu deitamos lado a lado, admirando os pontinhos brilhantes espalhados no breu noturno e jogamos conversa fora por um tempo, só que eu ainda estava incomodada, pensando na situação em que minha conversa com Celeste acabou. Não pude deixar de conversar com ela sobre tudo o que estava sufocando meu peito.- Sabe, Cat... Você não acha horrível isso que fazem com a Celeste?
- Claro que acho, amiga, só que... Fazer aquilo que você fez na aula foi loucura!
- Cê acha mesmo isso?
- É claro né minha filha! A escola todinha odeia a menina, não tem como mudar isso.
- Eu sei que não tem como mudar, mas...
- Mas?
- Você não acha que se tivéssemos continuado a conversar com ela as coisas não seriam diferentes?
- Até poderia ter sido, Safi, não tem como saber. Você não pode mudar nada, e não é sua culpa, para de bobeira.
- É que...
- É que nada. A essa altura do campeonato, você têm uma crise de remorso, sério? Não é você quem julga a menina, não é você quem a maltrata, você não tem que se sentir culpada por nada, entendeu? Está se arriscando, como aqueles seus amigos loucos que foram expulsos, parece até que você atrai problemáticos.
- Entendi amiga, eu concordo com o seu ponto de vista, mas é que...
- Não amiga, chega! Nada de "mas é que", acabou. Eu te amo Safira, você sabe que sim, só que já deu esse assunto pra mim. Tô até ficando com dor de cabeça com isso tudo. Você não precisa salvar essa garota dos erros dela, deixa que ela se resolva.
- Se fosse comigo, você deixaria que eu me resolvesse sozinha também?
Ela para de encarar o céu estrelado e se senta de uma vez. Eu ainda estou deitada e ela está me olhando de forma confusa e um pouco assustada.
- Você nem gosta de mulheres amiga, não têm nada a ver fazer esse tipo de pergunta.
- Tem tudo a ver eu fazer esse tipo de pergunta. Você me conhece, me julgaria de forma diferente se soubesse que eu beijei outra menina?- Olha, não tá mais aqui esse assunto ok? Você tá ficando doida pensando que pode fazer o que bem entender e enfrentar valentonas como Beatriz, já foi, acabou. Não quero mais que me inclua nesse tipo de conversa, não quero me relacionar com essa confusão. Se insistir nisso você vai sozinha.
Fico em silêncio, porque não sei como e o que responder a Catarina. Devo ter extrapolado os limites. Nem quando contei que eu estava ficando com Juliano minutos antes da treta da expulsão ela me repreendeu, só riu comigo da situação e me chamou de louca. Penso tanto na situação que os segundos em silêncio acabam virando alguns minutos, e Catarina volta a encarar o céu por um tempo, mas se levanta e me olha por cima do ombro.
- Eu vou deitar, e você deveria fazer a mesma coisa. E Safira, é melhor deixar toda essa história de lado. Eu sou uma ótima aluna, então sabe o que eu faço com qualquer coisa que me atrapalhe e que traga o caos pra perto de mim.
- Claro, Catarina, eu entendi.Demoro um tempo até voltar para dentro da escola. Resolvo ir até a cozinha e tomar um pouco de leite, apesar de já serem quase três da manhã. Devo ter feito barulho, porque irmã Cláudia aparece após alguns minutos.
- Oi querida, o que faz acordada uma hora dessas? - Ela liga a luz e para a minha frente
- Tia Cláudia, eu não tô conseguindo dormir muito bem têm algum tempo.
- Alguma coisa está te preocupando criança? Tem sonhado com coisas ruins, são pesadelos?
- Quem dera fosse viu? É que uma amiga minha está com problemas, e eu não sei como ajudar
- Você fala da mocinha nova?
- Ela mesma.
- Eu ouvi mesmo algumas coisas sobre a situação dela, me diz Safira, está tão ruim assim?
- Mais que ruim tia. Acho que estão batendo nela, e pelo visto a direção não faz nada.
Cláudia fica em silencio por um momento. Me olha apreensiva e dá um suspiro longo.
- Olha mocinha, o que se é falado na cozinha, fica na cozinha, beleza?
Uma Irmã Cláudia totalmente diferente aparece na minha frente. Surpresa, apenas concordo com a cabeça.
- Eu sei que todos negligenciam a Celeste por causa da fofoca sobre a sexualidade dela, e eu não concordo também.
- Mas tia, você não deveria concordar por causa da religião e tudo mais?
- Sim, deveria, e não também. Fala mais baixo se não vão te escutar, e para de me chamar de tia, eu nem sou tão velha assim.
Tampo a boca para conter o riso.
- Acima de tudo eu acredito que Deus é amor, e que devemos amar e respeitar a todos, pois somos igualmente seus filhos.
- Bom isso tá até na Bíblia, né? Amar ao próximo como amamos a nós mesmos.
- Algumas pessoas não possuem tanto amor assim para compartilhar Safira, essa é a questão. Venho tentando ajudar Celeste desde quando percebi o que acontecia. Mas na minha posição não consigo fazer muita coisa. A igreja é realmente, muito rígida, mas agressão? Isolar a menina do restante das pessoas? Os pais dela não ligaram nenhuma vez pra saber como ela está, e quando ligamos para informar o que têm ocorrido, simplesmente disseram estar sem tempo pra resolver problemas da filha problemática.
- Que absurdo! Ridículo a tratarem dessa forma.
- Eu sei. Ela passa os fins de semana aqui, praticamente sozinha. Os outros alunos ignoram a presença dela, eu tento amenizar como posso. Fazendo um lanche mais gostoso no fim de semana, trago uns chocolatinhos pra ela... - Irmã Cláudia massageia as têmporas, parece cansada. - Ainda assim ela não costuma conversar comigo.
- Nem comigo. Na verdade, tentei me aproximar dela tem uns dias e acabamos brigando.
- Dá um desconto pra ela, viu? Não deve ser fácil.
- É, eu sei. Vou pensar em outra forma de ajudar, acho que ela não gosta muito de mim não
- Tenta se aproximar com calma, e qualquer coisa me fala que tento ajudar também, vai ser bom se Celeste conseguir fazer uma amizade nova. Agora vai pra cama, antes que nos vejam e a gente se encrenque.
- Com o tanto de barulho que a gente fez muito me admira que não tenham percebido ainda.Sorrimos uma para a outra em silêncio. Irmã Cláudia me dá boa noite, apaga a luz e volta a fazer seja lá o quê fazia de madrugada. Volto para o meu quarto e me deito, mas o sono não dá as caras. Pela fresta de luz que a lua reflete pela janela, consegui enxergar o suficiente para perceber que Catarina já havia adormecido, talvez eu tenha demorado de mais a voltar, ou ela só não queria ter que lidar comigo depois da nossa discussão.
Na cama a minha direita Celeste também estava adormecida, parecia tão em paz que, quase consegui pensar que estava tudo bem. Começo a lacrimejar. Agora, sozinha com meus pensamentos procuro entender o motivo de estar tão abalada com algo que não diz respeito a mim, como uma pessoa que em mal conheço pode me deixar tão apavorada e indignada ao ponto de eu ignorar os concelhos da minha melhor amiga.
Adormeço pensando em como posso resolver tudo sem enlouquecer, e na esperança de que o dia seguinte seja mais tranquilo, já que a sensação que tenho é de estar prendendo a respiração sem parar, sabendo que preciso urgentemente de ar.
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De Todo Meu Coração
RomanceQuando a aluna nova começa a ser alvo de homofobia, Safira se vê em um dilema: manter a paz e segurança do seu ciclo de amizades ou tentar ajudar Celeste. Um drama romântico LGBTQIA+ para te fazer pensar e se apaixonar! • Contém gatilhos como homofo...