Amor Proibido

11 3 0
                                    

Celeste foi pega beijando uma garota atrás da escola em que estudava, e desde então, sua vida se tornou um caos. Os parentes a xingaram e até bateram nela, a forçaram a ir em absolutamente todos os encontros de todas as igrejas católicas da sua cidade. Benzedeiras, exorcistas, padres de todos os tipos e com diferentes métodos de “cura”, vários castigos extremos como deixá-la isolada em seu próprio quarto, exilada do resto do mundo e com contato humano suficiente para se alimentar (e era muito mal alimentada).
A cada dia aumentava a curiosidade de todos que estudavam ali, chegando a ala masculina na mesma rapidez que haviam corrido os boatos pelo lado feminino da escola. Não paravam de aparecer opiniões, suposições e fofocas difamando-a, durante dias a fio o falatório seguia constante. Eu achei isso um absurdo na época, e claro que continuo achando. Assim que descobriram, as meninas da escola começaram a isolar e caçoar da garota e, eu confesso, também me afastei. Aquele disse me disse diário me assustou e eu não sabia como agir, o que fazer e do lado de quem deveria ficar meu apoio. Foi angustiante! Às vezes, eu a escutava chorar durante toda a noite, já que tinha se instalado na cama ao meu lado, eu me sentia muito mal, ainda assim não me aproximei, com todos contra ela não tive coragem de intervir e isso me frustrava, eu sabia que era um tratamento injusto e desnecessário, sabia que era ofensivo além da conta, era uma crueldade sem fim, e eu não conseguia entender a razão.
Dava para sentir toda tensão e ódio pelos corredores sendo semeados, impregnando fundo na mente das pessoas. Nuna compreendi, juro que não. Era só... Amor. E eu já vi acontecendo antes, eles já ficaram sabendo de situações muito piores e não fizeram tanto alarde, por que dessa vez era tão importante ser cruel com a garota solitária? Amélia e Juliana estavam se pegando com o Júlio, ter um homem no meio deixa a sua “doença” mais branda? Mais aceitável? Eu sinceramente não consigo enxergar a diferença.
A direção não tomou frente em momento algum sobre o que estava acontecendo. Parecia até que foi de propósito: deixar escapar “sem querer” a história de Celeste e ver o circo pegar fogo, não sei em que mundo isso é comportamento de uma escola, sendo cristã ou não O amor ao próximo não se estende a quem é diferente de você, é isso? Porque o comportamento das garotas era brutal, agressivo e hostil.
A frieza no olhar delas era pavorosa. Elas se divertiam chamando Celeste de aberração, endemoniada, puta, vagabunda e todo o tipo de xingamento que você conseguir imaginar, falei os menos horríveis. Todos os dias mostravam que ela não era bem-vinda ali e nem em lugar algum, já que era uma abominação malvista pela sociedade e condenada ao inferno. Estavam a machucando. Os detalhes eram sutis como aparecer nas vistas com menor frequência do que costumava aparecer, blusas de gola alta, mangas compridas mesmo no calor e um novo hábito de se maquiar, coisas eu ninguém perceberia obviamente, ela não tinha quem se preocupasse, sequer tinha a mim direito, eu tive vontade de ajudar inúmeras vezes, e mesmo assim me escondi atrás da minha fraqueza, pela segunda vez na vida eu era a Safira covarde, aquela que cegamente obedecia os pais, aquela que tinha todos os passos calculados e observados, a que se saísse do caminho tinha certeza de que seria punida, então fingia a perfeição e se calava, mesmo quando tinha vontade de gritar.
A agressão era cada dia mais constante, disfarçar não adiantava tanto quanto antes e dava para notar que a violência estava mais feroz. A maquiagem já não cobria tanto os hematomas roxos e vermelhos, e Celeste apareceu mancando. Busquei pela direção, mas todos se faziam de cegos, a famosa “fazer a sonsa”, como o restante da escola. Quem não estava por trás das agressões tinha medo e fingia não ver, como se nada estivesse acontecendo. Ninguém fazia nada, ninguém nem tentava fazer, sequer tentaram conhecer Celeste, o preconceito gritou mais alto do que a empatia.
Eu não queria ficar parada só olhando ela definhando e morrendo na minha frente, não podia deixar isso acontecer quando durante as madrugadas os soluços dela, sussurrados clamavam pela ajuda de alguém, por qualquer intervenção térrea ou divina, Celeste precisava de um milagre. O bullying em si sempre foi uma coisa grave nas escolas, aqui sempre teve disso, só que essa situação já passou dos limites do absurdo, tinha que parar, céus o que eu sozinha conseguiria fazer para isso parar?
Não tinha muita intimidade para tratar desse assunto com Catarina, por mais amigas que fôssemos, era nítido o pavor dela toda vez que eu citava a possibilidade de ajudar a Celeste, mesmo que fosse uma ligação anônima para o 190. Ela simplesmente sentia no seu íntimo que iriam associar essa ajuda a ela e a mim, já que a fama de garota boazinha a precede.
— Você vai perder seu tempo e sua paciência se preocupando com isso Safira, deixa pra lá
— Não é assim tão simples Catarina, e se elas matarem a novata? Eu seria parte de um homicídio por omissão de fatos!
— Quis dizer cúmplice né? Como você seria cúmplice se nem contato direto com essas doidas você têm? E o pior não é nem isso querida amiga, você pode começar a apanhar também
— Não sei por que fariam isso
— Safira, às vezes sua lerdeza me dá medo — Catarina revirou os olhos
— Uai, mais porque cê diz isso?
— Filhaa, acorda! Você vai dedurar elas, nada bom pode sair disso, amiga! — Ela diz cruzando os braços
— É, eu acho que você tem razão né
— Dã, como sempre! Eu sou o anjinho no seu ombro que te evita de fazer merda! — Ela disse sorrindo, triunfante.
— Eu só queria que às coisas fossem diferentes sabe? Não acho que a Celeste merece isso só por uns beijinhos. — Agora é minha vez de cruzar os braços.
— Em uma menina, não esquece esse fator importante.
— Tá mais e daí? Meus amigos antigos estavam se pegando os três peladões no jardim, e não teve toda essa repercussão!
— Nem deu tempo né Safira, eles foram expulsos
— Ai, tá bom, você venceu, não toco mais nesse assunto, você não tá entendendo o meu lado.
Não esperei pela sua resposta, peguei a mochila a ao meu lado e saí da biblioteca rumo ao meu dormitório. Catarina e eu tínhamos essas pequenas discussões com certa frequência, mas sempre voltávamos ao normal. Nossa amizade era sólida na medida certa para colegas de escola do ensino médio, isso só não acontecia quando o assunto de intervir por Celeste aparecia. Ela ficava nervosa, mudava de assunto ou a gente brigava, acabei desistindo do assunto e guardando minhas preocupações só para mim.


Em uma tarde fria, a neblina parecia tentar encobrir algo. Senti um arrepio na espinha quando uma fina chuva começou a cair atipicamente, escurecendo ainda mais o dia nublado. Eu deveria ter saído correndo de volta para cama, no entanto permaneci em aula, droga de recuperação, droga de matemática, droga de escola, droga de Beatriz, droga!
A má sorte de Celeste parecia escrita por mãos habilidosas de um criador simpatizante do caos, de todas as turmas e com todas as pessoas possíveis ela cruzou com aquele valentão inútil que toda história clichê e todo ensino médio de escola têm, e na nossa história ele tinha cabelos encaracolados, usa saia drapeada azul marinho, uma longa trança sempre perfeita (e ensopada de gel). Seu nome era Beatriz, e não tinha aluna ou aluno dentro daquele prédio que não temesse o seu nome. Quando ela te pegava pra Cristo meu amor, nem o próprio se atrevia a intervir.
Nesse dia em específico, minha cabeça doía e eu estava desanimada pra caramba, se não tivesse atividade de recuperação pra fazer eu daria um jeito de ficar na cama. Minha paciência atingiu seu limite máximo, eu estava em um mal dia e de péssimo humor. Esqueci completamente de qualquer consequência que eu teria e entrei em uma briga.

— E aí, aberração, cadê a sua namoradinha? Por que você não traz ela aqui pra gente poder brincar com ela igual brincamos com você?
— Por que você não vai cuidar da sua vida e deixa a menina em paz, Beatriz? — Eu disse.
—Fica fora disso boneca, ou quer brincar também?
—Deixa de ser idiota, Bia, já não tem mais graça isso que cês tão fazendo! Sossega o facho e deixa a moça
— Ah, não? Pois pra gente tem sim. — Ela e as amigas começaram a rir — tu tá defendendo esse monstrinho, se esqueceu de que Deus odeia a raça ruim dela?
— Nem sabia disso, achei que ele detestava valentonas como você!
Celeste então bateu com as mãos em sua mesa, derrubando tudo o que estava em cima, olhou para Beatriz e as amigas e depois me encarou com os olhos cheios de lágrimas e saiu correndo da sala. Beatriz sorriu triunfante e suas seguidoras estavam excitadas com o ocorrido, cochichando umas com as outras, apontando para a porta enquanto a menina saía da sala.
— Você não passa de uma babaca, Beatriz, deixa a menina em paz! — Eu disse correndo atrás de Celeste, sem nem esperar pela resposta. Ela já estava muito à frente e eu não a alcançaria se não parasse.
— Ei, espera por f... Por favor, me deixa f... Falar contigo!
Eu corria tentando falar alguma coisa. Ela subiu as escadas para o segundo andar, atravessou o dormitório e se trancou no banheiro. Bati na porta, sem resposta.
— Por favor, Celeste, sai aí, me deixa falar contigo.
Não escutei nada além do choro e soluços altos.
— Qual é, cara, vai me deixar aqui falando sozinha? Já tomei ferro por sair da aula, agora vão me achar louca por estar falando com a porta!
Ela abre a porta bruscamente, seu olhar não é de tristeza, mas de raiva.
— O que você pensa que está fazendo? Já não bastava os outros me humilhando, agora você? Justo você, que eu pensei ser gentil e diferente dessas vagabundas daqui, fala sério né! — Ela chuta a porta e avança ficando bem próxima a mim.
— Eu... O quê? Não, lógico que não, essa não foi a minha intenção, eu... Eu só queria saber se você está bem, queria que a Bia parasse... Não foi por mal!
— Aham, sei, assim, do nada você decide que vai me defender, porque é uma alma bondosa que ama ajudar os outros — Começou rir ironicamente — Se fosse sua intenção mesmo, teria feito isso antes, não agora depois desse tempo todo sofrendo essa putaria desgraçada!
— Ei, não precisa falar assim comigo, eu só tentei te ajudar, deixe de ser mal-agradecida! — Me irrito, cruzando os braços.
— Ajudar? E desde quando eu sequer pedi a sua ajuda? Olha pra você Safira, baixinha, gordinha, acha mesmo que alguém como Beatriz vai te levar a sério? Ela mal se leva a sério quem dirá alguém mais fraca do que ela. É por isso que não reclamo e não digo nada, porque eu sei que não dou conta dela e que não tem ninguém se importando com isso! — Suspira.
— Até parece! A gente dá conta dela sim, é só falar pras freiras e... — Ela me interrompe.
— A gente? Não existe a gente! É muito fácil você vir aqui e tentar fingir que se importa sendo que eu sei que não. Eu não preciso da sua pena, muito menos da sua ajuda!
Eu fico fora de mim e a empurro para dentro do banheiro, furiosa. A jogo contra a parede, furiosa e meus olhos se enchem d’água. Em segundos, começo a chorar. Sem ter qualquer controle sobre a situação.
— Você não precisa ser rude assim comigo não, tá me escutando? Eu não fiz nada contra você, elas fizeram, não eu. Então, quando a porra de uma pessoa tenta ser gentil com você e te ajudar, você não age como uma idiota com essa pessoa! — Solto seus ombros e me distancio, massageando o espaço entre meus olhos com a ponta dos dedos.
— Eu só...Respiro fundo. — Eu só me cansei de ver todo mundo te tratando assim. Na verdade, desde o início eu não gosto dessas atitudes, mas você nunca demonstrou querer ninguém por perto e então eu me afastei. Não vim aqui ou fiz aquilo na aula por pena, e sim, porque foi o que eu achei certo fazer.
— É... O inferno está cheio de boas intenções, e você resolveu ser a pessoa legal tarde de mais. Obrigada, mas não preciso de você, e nem de ninguém pra poder me defender.
Ela sai do banheiro e eu não a impeço e nem a sigo, só fico ali parada, enquanto as lágrimas escorrem. Estou com raiva, frustrada, chateada e magoada. Envergonhada, por não ter feito nada antes, por ter escutado e visto tudo calada, por não tentar falar com Celeste. Me sinto um lixo, mas não tem nada que eu possa fazer agora, ela mal me conhece e já me odeia.

De Todo Meu CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora