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  Há quem diga que, o camponês fora sequestrado e encarcerado por sua beleza, que feria os olhos da grande besta que jamais poderia igualar-se ao rapaz de aparência e caráter singular. Por inveja e raiva o deixou perecer pouco a pouco, observando os traços delicados e esbeltos de seu corpo degradando e apodrecendo no escuro da imunda prisão, alegrando o coração cruel do monstro que vivia naquele solitário castelo.

  Mas só os pássaros e demais animais silvestres que arriscavam perambular à área - tal que carregava uma aura etérea - sabiam a verdade por trás da relação entre a beldade e a fera dos contos. Tudo aquilo não passava de boatos sem pé e nem cabeça, os dois homens viviam seus dias com sorrisos que faltavam rasgar as bochechas.

  Xie Lian nunca entendeu a origem da história. Como poderia, seu amado ser a aberração que idealizavam? Uma piada sem graça, e isso o fazia beirar a raiva.

  Numa manhã como qualquer outra desde que passou a morar por livre e espontânea vontade no antigo castelo, - que agora pertence a Hua Cheng - Xie Lian alimentou as aves visitantes e as delicadas flores do jardim que o agraciavam com o aroma perfumado. Por estar distraído com seus afazeres sequer notara a segunda presença no recinto, até sentir braços rodearem sua estreita cintura e lábios roçarem o lóbulo da orelha.

  — Gege outra vez deixara meus braços, não suportei a ausência de seu calor em meio aos lençóis.

  — Oh, perdoe este humilde. À vista de nosso divertimento no dia anterior, me falhou a memória e não pude ceder cuidados as adoráveis plantas. Apenas lembrei-me esta manhã. — Disse num sussurro.

  — Desculpei vosmecê no instante que o olho deste San Lang caiu sobre sua expressão. Certamente é mais que aprazível admirar a concentração que exala cuidando desses ramos inúteis de capim.

  — San Lang, não diga-

  Antes que pudesse finalizar a sentença, gritos enfurecidos junto a barulhos ensurdecedores foram escutados na entrada da residência. Ambos caminharam em direção ao som, entendendo a situação de forma rápida.

  — NÃO PODES PERMANECER NESSA FLORESTA!

  — VOCÊ É UMA AMEAÇA PARA NOSSA ESPÉCIE, UMA AMEAÇA PARA OS CIDADÃOS DA VILA! SELVAGEM!

  Há tempos os dois lados estiveram insatisfeitos com as condições de suas vidas. Enquanto Hua Cheng sofre a maldição de continuar preso naquela casa por toda 'eternidade', os moradores dos arredores tem se incomodado com sua presença que foi ganhando mais reconhecimento ao decorrer dos anos.

  Proibidos rigorosamente de fazerem uso da estrada de fácil acesso ao município vizinho, encontrando problemas frequentes nas outras rotas disponíveis.

  — Humanos tolos, acham que... — Rosnou a figura carmesim.

  — Devido a ignorância balbuciam tais asneiras, por favor esqueça e não os machuque. — Abraçou o homem por trás, impedindo que seus passos prosseguissem. — Resolverei isso de maneira civilizada, mesmo que signifique expor minhas calúnias.

  Dois anos atrás, Xie Lian foi dado como desaparecido/falecido e jamais mostrou a face novamente aqueles que o conheciam. Em prol de quebrar a praga jogada contra seu marido, não pôde vagar livremente.

  O que pouco atazanou a paz de espírito; somente o pensamento de libertar Hua Cheng com o pacto de sangue que ainda está sendo trabalhado e aprimorado, é o bastante para tranquilizá-lo por décadas.

  [...] A favor ou não da ideia, com um balançar da destra os portões foram escancarados.

  A divisória visível já deixara de ocupar os olhos curiosos, permitindo que pudessem espiar a residência requintada e moradores mal humorados.

  — Senhores e senhoras, creio que possamos chegar a um acordo. — Com um pequeno erguer de lábios que obviamente não fora retribuído, Xie Lian disse.

  Ainda em choque, por descobrirem que não havia fera alguma e apenas duas belezas, seguiram em silêncio. Abaixando tochas e ancinhos.

  — Por motivos ocultos mas não maliciosos, a estrada que tanto almejam enfim será liberada. Apenas peço encarecidamente que aguardem cerca de sete meses completos.

  — SETE MESES!??! Enquanto isso, o que faremos? Devemos quebrar nossas carroças na estrada incerta? — Uma mulher questionou.

  — Queiram ou não, o caminho compõe o lote de minha residência. O que farão a respeito disso, uh? — Debochou Hua Cheng. — Pobres e moribundos como são, sequer possuem uma cova onde deitar. Pretendem comprar o lugar? Fiquem a vontade para disputarem comigo.

  — San Lang, permaneça em silêncio.

  — Desculpe, Gege...

  Palavras e mais palavras foram jogadas ao vento, ao menos parcialmente as coisas foram resolvidas. E agora uma nova fofoca circula as redondezas:

  — O camponês está vivo. Qual era mesmo seu nome? — Perguntou um mercante de legumes.

  — Lian... Xie Lian, era membro daquela família rica de comerciantes!! — A esposa respondeu com animação.

  — Viram o fio do destino em seus dedos? Que desperdício, era um rapaz tão bonito. — Outros dois intrometidos invadiram a barraca com conversas insolentes.

  — Corta-manga maldito, nos fará esperar por mais de meio ano.

  O novo assunto alimentou o estômago dos insensatos, antes atormentados pela fome de boatos.

MartyrdomOnde histórias criam vida. Descubra agora