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Essa luz. Eu possuo sua recognição. Descreveria como o vislumbre que adentra os mais profusos compartimentos erguidos, por meio de insistência e determinação, desdobrando-se até alcançar a feição de um jovem emplumado e sonolento. Haveria de engendrar, não dormira devidamente. Toda vez em que pestanejava, experienciava sua silhueta obscura facejando-me com pares de íris osciladas entre azul e verde, fulgentes. A gema da sorte num feitio elipse, a duplicata que prefiguraria máculas prateadas ao efeito de excelsa aproximação.
— O que- — a mancha em meu rosto fatigado refletido no espelho, ali estava uma confirmação de que a noite passada fora autêntica. Um borrão escuro já ressecado, incômodo ao toque delicado pela ponta dos dedos.
Lábios estiolados, olhos cansados. A água cristalina e purificada após retirada e filtrada das nuvens manava pela torneira. Preenchi o refrescante líquido na palma das mãos, criando um formato côncavo com estas e levando-as até o rosto extenuado. Gotículas deixaram-me a face quando enxuguei-as com a maciez da toalha. O resquício obscuro se foi.
Alonguei as asas, estirando-as para os lados, seguido dos braços, elevando-os juntos acima da cabeça, sentindo os músculos, aos poucos, mais relaxados. Escancarei todas as janelas, mantendo a pura e agradável circulação da brisa cruzando pelos cômodos. Cantarolei baixinho a mim mesmo enquanto preparava um sanduíche e preenchia um copo com leite fresco. O doce aroma do mel logo pela manhã sempre trouxe-me boas sensações.
— Saudações Umye, que bom vê-la — a ave adentrou pela janela da cozinha e pousou em meu ombro.
Este belo e amigável animal vem-me alegrando com suas esporádicas visitas faz algumas semanas, ela é esperta e astuta, há vezes em que sou despertado pelos toques de seu bico ou arranhar das patas vermelhos na vidraça, e desde sua primeira aparição, dividimos o café da manhã, farelos são seus favoritos. A forma como a plumagem dela destaca-se perante os demais pássaros me fascina, sua paleta é a notória combinação do preto com o azul e do branco com o cinza. A região da cabeça e do papo são cobertas pela cor mais escura, a extensão de seu corpo banhada por um céu anil, as extremidades da calda comprida e das asas possuem nódoas claras e grises.
— Está com fome? — o olhar expressivo e esverdeado de Umye espreitou o alimento em minha mão, acariciando-me os espinhos laterais, gorjeando — Tudo bem, sirva-se — ela pareceu sorrir naquele instante, sustentando parte do pão entre as garras foscas, agradecendo, reproduzindo sons finos. O piar agudo que deu origem ao nome que lhe adotei, pois assemelha-se com a pronunciação deste.
A espécie é desconhecida até o momento. Recordo de haver perguntado a vários anjos sobre ela, mas nenhum deles soube identificá-la. Geralmente, no entardecer, Umye parte para o norte. Ao longe vejo-a desaparecer em meio às florestas densas crescentes da terra, o que acarreta-me novas proibidas curiosidades de exploração.
— Bom dia — saudei meu velho amigo. Saíra de casa até o local que costumamos nos reunir e dialogar por horas, as nuvens são pacatas e poucos anjos circulam aqui.
— Onde estava ontem à noite? — o azulado questionou de imediato, assustei.
— Em casa, dormindo — respondi vagamente.
— Está ciente de que fora um marco histórico para o nosso povo?
— Então você foi — arredei meu olhar aperreado, julgador.
— Certamente! Por quais premissas ausentar ia-me de uma festa? E não tratava-se de uma qualquer, era a celebração do centenário de nossa própria ponderação! Organizaram a ampla ceia, reproduziram elóquios e melodias de ótima qualidade, além de... — prosseguia contando-me os detalhes que pouco despertavam-me um interesse sequer.
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✧ 𝕾úplicas da meia-noite ✧ (PAUSADA)
FanfictionFaz quase cem anos que o mundo dividiu-se. Acima das nuvens, vivem aqueles donos de plumas brancas como algodão, inocentes e sorridentes. Já em terra firme, seres carnívoros, tomados pelo desejo de sangue, cujas asas negras ardiam voluptuosas. Era e...