Capítulo 04: Fique

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As pessoas nos decepcionam. Ou talvez sejamos nós os causadores da nossa própria decepção por cobrarmos delas algo que seriam incapazes de realizar. De qualquer forma, construir vínculos é uma forma fácil e certeira de se arriscar às decepções. Eu tinha um forte vínculo com alguém. Mas ele foi embora. E o laço que nos unia, tão de repente, mostrou-se frágil e arrebentou.

Ele me via. Ele me fazia sentir que eu era real. Que a minha vida era real. E que não importava o que as outras pessoas dissessem, ele estaria sempre ao meu lado. Fora ele quem me ensinara a andar. Das poucas lembranças que trago comigo da infância, uma delas é uma memória distante de quando ele ficava de quatro no chão, pequeno ainda, e fazia com que as minhas mãos se apoiassem em suas costas. Eu amava aquilo. Com o seu apoio, comecei a dar meus primeiros passos. Comecei a andar por mim mesmo. Comecei a descobrir e a viver o mundo.

Nossa ligação era tão profunda que a primeira palavra que eu disse não foi “papai” nem “mamãe”. Ele se divertia, e falava com orgulho, quando me contava que a primeira palavra que falei foi “mamão” apontando em sua direção, suplicando para que me desse um pouco de atenção. Eu gostava da sua atenção. Não era algo obrigatório, feito porque tinha de ser. Era algo natural. Feito porque era espontâneo. E com a sua atenção, com a sua compreensão, eu me sentia seguro. “Pessoas como eu” precisam de “pessoas como ele” que nos fazem nos sentir bem e aceitos independentemente de qualquer variável.

Seu nome era Felipe. Nós tínhamos três anos de diferença, mas isso nunca foi problema para a relação que existiu entre nós desde que cheguei ao mundo. Pelas fotos que meus pais tiravam, meu irmão foi cuidadoso desde sempre. Queria participar. Queria ajudar. Talvez quisesse que eu olhasse para ele não como um adversário, como às vezes acontece entre irmãos, mas que eu o enxergasse como um amigo. A verdade é que, quando cresci, não pude vê-lo apenas como amigo. Mas como o melhor. O amigo que, eu tinha certeza, jamais encontraria em lugar algum.

Ele também me ajudou a aprender a ler e escrever. É divertido rememorar as nossas tardes de estudo. Ele fazia aquilo parecer divertido. Não era como estudar com os meus pais ou com os professores. Ele tinha um talento para ensinar que nunca encontrei em outra pessoa. Ele era encantador. E esse encanto me fascinava. E esse fascínio me fazia me esforçar apenas para que ele olhasse dentro dos meus olhos e me dissesse o quanto estava orgulhoso pela minha evolução. Isso foi assim sempre. Mesmo quando entrei no primeiro ano do ensino médio. Se eu precisasse de algum apoio, se eu precisasse de algum reforço em determinada disciplina, lá estava Felipe cercado pelos seus livros e por sua boa vontade. Com ele a vida parecia fácil, serena e segura.

Ele me ensinou a dirigir! Tenho apenas dezessete, mas aos quinze, quando ele já tinha dezoito, levou a mim, escondido de nossos pais, para um lugar quieto e reservado. Era um lugar cercado por árvores. A estrada asfaltada se forrava por folhas caídas e frutos amassados. O movimento era mínimo, então parecia o local exato para um inexperiente pegar no volante. E, então, com a paciência de sempre, ele me ensinou. Da primeira vez que dei a partida no carro, quase fomos jogados para fora através do para-brisa. Ele riu. Outros poderiam ter me xingado, poderiam ter se indignado, mas ele apenas sorriu. Pediu calma. Mostrou como eu deveria fazer. E me deu mais uma chance. Funcionou. Com apenas um dia de aula eu já havia aprendido o que provavelmente levaria dias numa autoescola.

Mas a questão é que ele era um ser humano. Uma pessoa. E pessoas, como eu sempre digo, podem nos magoar quando menos esperamos.

Era meu aniversário de dezesseis anos. Eu nunca gostei de festas, de convidar uma multidão de pessoas, de fazer aquelas reuniões entediantes com gente que, na verdade, eu nem gostava. Era sempre a mesma coisa. As pessoas olham para você, desejam o mesmo de sempre e seguem suas vidas. Não faz sentido. Para mim, nossos aniversários tinham que ser celebrados apenas com pessoas realmente importantes. Aquelas que o conhecem de verdade. Que compartilham algo com você. Então pedi para que fôssemos para uma pousada no interior. Apenas meus pais, meu irmão e eu. Meus aniversários costumavam ser assim. Tranquilos, reservados, comemorados somente com quem eu me importava.

Meu OrgulhoOnde histórias criam vida. Descubra agora