Por Entre as Tiras da Cortina

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Naquela noite... Ah, sim. Eu me lembro bem. O supermercado parecia um formigueiro em construção com seu tráfego implacável, um costume durante o horário de pico. Entre as seis e as oito da noite o fluxo aumentava consideravelmente, bem como nossa correria em atender toda a demanda. Confesso que não era uma visão das mais agradáveis ver aquele mundaréu de clientes enfileirados esperado impacientes por serem atendidos. Alguns nem piscavam, exibindo carrancas de impaciência, nos fuzilando com os olhos. Ali, no setor de frios e padaria, enquanto alguns funcionários estão freneticamente fatiando embutidos para manter o balcão apresentável, outros atendem a fila, organizam o setor, arrumam a vitrine de pães... E por falar em pães, faltou pão naquela noite, bem durante o maldito horário de pico. "Está ainda no forno. Vinte minutos". Alguns clientes disseram que voltariam depois. Outros decidiram por esperar. Ah, como vinte minutos pode ser uma eternidade para pessoas a espera de seu amado e Apetitoso pão! Resolvi, para matar o tempo ocioso, lavar as bandejas sujas que estavam acumuladas. E foi ai que começou a ficar estranho. Ao lado da pia, existia uma das passagens que nos levam ao corredor interno. Tal passagem era parcialmente velada por aquelas típicas cortinas em tiras de PVC, muito comuns para separar o ambiente em que os clientes podiam circular e o estoque em qualquer comércio como aquele.
Mas o que tem de importante em tal cortina? Por um lado, nada. Era apenas uma cortina. Já por outro... Sabem, quando a atravessamos, geralmente usamos os braços e mãos para afastar parte de sua superfície de nosso rosto, e o restante empurramos com o corpo. Não havia corrente de ar alguma passando naquele momento, e mesmo que tivesse, nenhuma corrente do ar faria a cortina se mover daquela forma. Vi quando ela se moveu, como se uma mão invisível empurrasse uma de suas tiras translúcidas para abrir uma brecha e poder por tal efêmero vão passar. Foi rápido, mas não o bastante para que me passasse despercebido. Desliguei a torneira, intrigado, e atravessei a cortina sinistra, olhando pelo corredor a procura de alguém que pudesse tê-la movimentado daquela forma. O vazio do longo corredor me acenou, arrepiando até a minha alma. O corredor começava em meu setor, passando pelo açougue e chegando finalmente no estoque, diante do par de elevadores de carga. Não havia ninguém transitando por ali naquele instante, e nem tempo o suficiente para que alguém ter se deslocado até a entrada mais próxima, a do açougue. Voltei para o balcão um tanto quanto atordoado, e não pude evitar de perguntar em voz alta, destinando tal questionamento a meus colegas:

- Alguém mais viu a cortina se mexer?

- Que cortina?

- Não vi.

- Também não.

- Eu vi!

Me virei, pois a resposta positiva tinha origem não de meus companheiros, mas de uma moça que esperava pelos pães atrasados.

- Eu também vi quando ela se mexeu. Até fiquei olhando pra ver se percebia alguém... Mas não. - Repetiu e reforçou a mulher, com firmeza.

- Parece que não sou tão louco assim afinal... - Comentei, sorrindo de nervoso. Então veio o frio. Um sopro maligno que subiu minha coluna vertebral, chegando veloz até minha nuca. Todos os pelos de meu corpo se ouriçaram, e senti minha pressão cair drasticamente. Não podia desmaiar! Respirei fundo por algumas vezes e avisei a todos que iria ao banheiro. Não sei se algum deles notou que eu me sentia mal, mas é provável que a resposta seja não. Não temos tempo de reparar em muita coisas em nossa exaustiva dinâmica de trabalho. Mas eu havia notado a cortina... Balancei a cabeça, tentando esquecer daquilo e me recompor. Ainda restavam pouco mais de duas horas para o fim do expediente.

Atravessei todo o extenso corredor, chegando ao estoque. Nosso elevador estava há meses "em manutenção", então me dirigi às escadas, descendo rapidamente todos os seus degraus. A parte inferior da loja. Era ali que se encontravam praticamente todas as câmaras refrigeradas que guardavam desde as massas de pães, até carne, sorvete, iogurte, queijo... Era ali também que ficava situado o estoque da parte de higiene e limpeza, além das salas de manipulação do açougue, hortifruti, frios, padaria e confeitaria. Fui em direção ao sanitário, no início do corredor, quando algo me chamou a atenção. Um vulto branco atravessou meu raio de visão, como um feixe de luz errante, desaparecendo nos confins, onde preparavam os pães e bolos. Não sei porque decidi seguir naquela direção. Àquela hora havia somente o responsável pelos pães naquele ponto onde o misterioso foco de luz seguira. Caminhei cambaleante, como que embriagado e atraído por um força que estava além de minha vã compreensão. Ao me aproximar de meu destino, escutei os característicos sons da padaria à todo o vapor: forno apitando, batidas metálicas das esteiras de pães contra a mesa de aço, e o resmungar do padeiro falando consigo mesmo, enquanto retirava os pães do forno. Pensei em entrar ali e perguntar se ele tinha visto ou ouvido algo de estranho, mas simplesmente não o fiz. Ao invés disso, minha atenção ficou voltada para uma salinha que ficava localizada ao lado da Padaria, lugar onde as vezes deixavamos cestos de pães vazios, vassouras, caixas e embalagens; mas que agora contava apenas com uma estranha máquina, grande e retangular, que sempre estivera ali e eu nunca soube para o que de fato servira um dia já que aparentemente não funcionava mais. Ao lado dela havia uma porta que sempre estivera trancada, mas não naquela noite. Ainda levado pela força sombria que brincava comigo como se eu fosse uma marionete sem vida, me dirigi a ela e girei sua maçaneta. Já tinha feito isso outras vezes, curioso como sou, mas a ela nunca antes havia cedido. Surpreso e amedrontado, me vi diante de um cômodo encoberto pela mais aterradora das escuridões. Sabe quando você se prepara para dormir e apaga todas as luzes da casa, deita em sua confortável cama e fecha seus olhos para um merecido descanso? Nesse momento parece que você está envolto pela mais completa obscuridade. Pois lhes digo que aquele breu era muito mais intenso do que isso. Era impossível ver o que existia para além da porta, então acendi a lanterna de meu celular e mergulhei nas trevas, sendo abraçado pela densidade. Era um sala pequena, contendo apenas um rack com algumas caixas de papelão sujas, uma cadeira com o encosto e uma de suas pernas quebradas, e uma escada. Sim, uma longa escada irregular que me levaria para um piso ainda mais baixo, algo que eu jamais sonhei que ali existisse. Em cima da cadeira moribunda, que só se mantia de pé por estar escorada num dos cantos do cômodo, existia uma marreta enferrujada de cabo curto, dessas usadas em construções para quebrar blocos. Afanei esse ítem, que serviria de arma, caso se fizesse necessário. Eu não sabia o que ia encontrar no fim dos degraus, mas se houvesse algo que tentasse me atacar, me ferir, queria estar preparado para me defender. Aquela ideia parecia ridícula, afinal, o que poderia existir naquele porão que pudesse me fazer mal além de, talvez, uma ou outra ratazana anti-social? Mas algo havia mexido na cortina. Algo produzira a luz que me fez seguir naquela direção. Senti que, diante do desconhecido, o poder de atração que me levara até ali se desvaneceu, o que significava que eu tive a escolha de só sair dali e deixar aquela história macabra para trás. Mas minha curiosidade derrotou meu temor com potentes dentadas, e me vi descendo hesitante, a lanterna de meu celular sendo o único foco de luz a me guiar. Na outra mão, a marreta firmemente empunhada. Não sei quantos degraus de fato percorri, mas a descida completa demorou cerca de três minutos. Senti um forte odor de bolor que de cara atacou minha rinite, bem como escutei o barulho de diversas criaturinhas roedoras fugindo da luz como vampiros fugiriam dos raios do sol. Aparentemente eu me encontrava em algum tipo de galpão subterrâneo abandonado. Alguns paletes velhos, quebrados, jaziam escorados a esmo na parede próxima a escada que eu acabara de descer. Mais à frente, uma mesa de madeira semi-apodrecida com alguns documentos velhos e caixas de papelão vazias, esquecidas. Pude notar graças a um som quase que ritmado, que existia uma goteira que despencava do teto carcomido pela umidade, atingindo um dos cantos da mesa de madeira. Por consequência, nasciam naquele ponto castigado pela a ação constante da água um punhado de cogumelos brancos e vistosos. Segui decidido para os fundos daquele galpão, onde encontrei inúmeras estantes com livros e arquivos desbotados, tudo coberto por uma generosa camada de poeira cinzenta. Pensei em voltar para meu setor, não parecia ter nada de realmente relevante ali, mas novamente algo que não saberia explicar bem me instigou a continuar naquele local. Perto dos limites do galpão, percebi que duas estantes haviam caído, os ítens que nelas antes repousavam estavam espalhados pelo chão, camufladas pela poeira. Mas havia um algo mais... Um objeto prensado entre as duas estantes suicidas. Primeiro acreditei serem mais livros ou caixas vazias, mas ao chegar mais próximo, senti meu ar faltar, meu coração parar, minha mente girar. Uma ossada completa me encarava com suas fendas profundas e vazias. Suas mandíbulas jaziam abertas, como num eterno e inútil grito por socorro jamais atendido. Ao que tudo indicava, seu crânio fora atingido durante o acidente. Eu não saberia dizer se fora um homem ou uma mulher, mesmo com alguma experiência assistindo o seriado Bones. Tentei sorrir com aquele pensamento aleatório, mas o terror da cena não permitiu que eu o fizesse. Em poucos segundos, minhas divagações me levaram longe, mais longe do que eu realmente pretendia ir.

"Quem fora aquela pessoa?"

"Se foi apenas um acidente, como nunca ninguém notou a sua falta?"

"Quem trancou por tanto tempo aquele lugar sabia que existia um cadáver ali. E se sabia... Se sabia, talvez não tivesse sido apenas um acidente, e sim um homicídio."

Aquela ideia desencadeou em mim uma violenta crise de ansiedade, algo que eu já estava acostumado, porém não naquelas proporções. Meu corpo todo passou a tremer compulsivamente, minhas pálpebras se abriam e fechavam desordenadamente. Queria correr dali, fugir, mas meus pés me traíram, devorados pelo solo, congelados no tempo afetados pelo Caos. Posso jurar que ouvi um sussurro no pé do ouvido, um alerta: Cuidado! Isso foi poucos instantes antes do impacto e da dor. Outra estante havia despencado, desta vez por cima de mim. Ela precionava meu corpo contra o chão, e como era pesada! Quando acreditei que conseguiria levanta-la o bastante para esgueirar meus membros suplicantes para fora daquela terrível armadilha, uma segunda estante caíu por sobre a primeira, tornando impossível minha tão almejada fuga. Senti algo quente escorrendo pela minha testa, e a vista começar a embasar. Tanto o celular quanto a marreta que eu antes segurava não estavam muito longe de meu alcance, de modo que tentei esticar os bracos e pegar meu aparelho na intenção de fazer uma ligação e pedir por ajuda. Tentando ignorar a dor de meu ferimento e toda a pressão causada pelas duas estantes, estiquei meu braco o máximo que consegui, fazendo as pontas de meus dedos tocarem no celular.

- Vamos, só mais um pouquinho...

Quando acreditei no milagre, ele me foi arrancado. Consegui perceber, mesmo com a vista embaralhada e a mente alucinada, uma mão puxando o celular para longe de mim, e logo em seguida o som da marreta tendo o mesmo destino, arranhando o cimento. A luz iluminou por uma pequena fração de tempo os contornos de uma pessoa, mas diante de toda aquela situação, foi impossível reconhecer sua identidade. Assim como o pobre esqueleto solitário, não sei dizer se era um homem ou uma mulher. Nem mesmo consigo afirmar se era humano, apesar de ter certeza que sua forma era humanóide. A iluminação se desfez, só restando a escuridão doentia e um silêncio angustiante. Mais angustiante ainda foi quando tal silêncio se transformou no som de passos, passos que vinham claramente em minha direção. Mesmo com o breu, tenho certeza que um par de olhos me encarava fixamente, para então desferir um único e preciso golpe com a marreta contra meu crânio. Foi rápido... Digo, morrer. Mas seja lá o que devesse acontecer depois, só não aconteceu. Quando tomei consciência sobre mim de novo, se é que posso dizer dessa forma, me vi a levitar vários sentimentos do chão, ainda dentro do galpão. De alguma forma meus olhos conseguiam ver cada detalhe do lugar, mesmo não existindo luz alguma para interceder por mim. Vi a mesa com os fungos invasores, as estantes ainda de pé, as estantes caídas, o esqueleto e... Meu corpo inerte. Em minha cabeça, uma cratera por onde vertia uma quantidade absurda de um líquido viscoso e escarlate. Subi as escadas, ainda flutuando, aterrorizado, querendo apenas acordar daquele pesadelo interminável que parecia ser tão real. Ao chegar no pequeno cômodo com a cadeira quebrada, não fui capaz de passar pela porta. Estava novamente bloqueada, trancada de um modo que nem mesmo um fantasma parecia ser capaz de burlar. Gritei, mas nenhum som saiu. Esmurrei, mas também não houve ruído, nem mesmo a sensação de tato. Fiquei nesse estado pelo que me pareceram horas, até finalmente despertar, desistir e me encolher num canto, desolado. Demorei para constatar que não estava sozinho.

- Ficará preso aqui comigo até que alguém encontre seus restos mortais e dê um fim digno a eles. Sinto muito.

A dona da voz agourenta era jovem, loura e extremamente pálida, trajando um uniforme branco ensanguentado. Apesar do pedido de desculpas, a criatura não lamentava de verdade minha lastimável situação. E como vou julga-la? Ao menos agora teria companhia em sua desgraça. Como estou tão certo disso? Bem... Ela sorria. O sorriso mais perturbador e diabólico que já tive o desprazer de presenciar.
Então, se você está lendo isso, não ignore. Me encontre. Nos encontre! Nos libertem, por favor...

Catarse: do Aterrador ao Melífluo (Volume Único) [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora