Cidade de São Paulo, década de 1940, 15 horas da tarde. Na rua Líbero Badaró, o centro via suas ruas mais calmas após a agitação do almoço, transeuntes sempre em passos rápidos atravessando as calçadas sem prestar atenção à todas as lojas do arredor, jovens engraxates com seus bancos à espera de algum trabalhador dos inúmeros escritórios da região. Numa das lojas, numa alfaiataria, dois homens atentaram-se ao costureiro intrigado.
“Não faz dois meses que retiramos suas medidas, senhor! Estão todas anotadas aqui... A não ser que alguém deva tê-las trocado.” O homem coçou o bigode, olhando para as calças que estavam curtas na altura das canelas do jovem parado em cima do degrau. O citado apenas apertou seus lábios, envergonhado, esperando que o humano se afastasse para soltar o ar de seus pulmões.
“É a décima vez que isto acontece, pelo manto de Nossa Senhora Aparecida!” Paulo Júnior se olhou no espelho de corpo inteiro do provador, esticando os braços e vendo como as mangas se encurtavam. “Já estou sem roupas para usar! Guarulhos começa a rir toda vez que me vê com essas calças, parecendo um caipira!”
“Não se esqueça que há menos de cem anos, era assim que você andava e não parecia nem um pouco incomodado com isso.” O homem mais velho sentado na poltrona controlou o riso, mas o esgar de seus lábios e brilho divertido de sua expressão o denunciava.
“Pois saiba que agora estou incomodado, e muito!” O mais novo revirou os olhos, andando de um ponto a outro da sala. “Como posso encomendar roupas novas se a cada duas, três semanas eu cresço mais? Vou ter que arranjar roupas maiores que as suas, se esse for o caso.”
“Também não sei por que cresces tanto, daqui a pouco estará competindo com um pau de tirar manga do pé!”
“Pai! Mas que coisa, meu Deus!” São Paulo Estado gargalhou alto, cabeça inclinada para trás antes de esconder seu rosto atrás do jornal que lia (ou tentava) enquanto a capital parecia à beira de um ataque de nervos.
O alfaiate principal da loja veio acompanhado do costureiro, ambos tentando decifrar o motivo da terceira mudança de medidas de Paulo Vicente Júnior, que continuava com a cara emburrada.
Pelo vidro da vitrine, Paulo podia ver como a paisagem urbanizou-se cada dia mais em sua capital, com prédios esticando-se e tentando alcançar os céus. A buzina e o motor dos carros era constante e se somava ao da multidão de vozes e saltos, formando uma cacofonia que só se aliviaria durante a noite. Abaixando as finas folhas de papel jornal, o Estado voltou seus olhos para o filho que, mesmo após os "dezoito", voltava a ter um estirão de crescimento.
"Tsc!" O município puxou seu braço e fez uma cara ameaçadora pro costureiro, que pulou para trás com medo. Paulo levantou uma sobrancelha em questionamento mudo e Júnior puxou um alfinete, o mostrando ao patriarca e entregando de volta ao humano com um revirar de olhos.
Era engraçado pensar que, se passasse um mês sem vê-lo, levaria um susto ao ver que já ultrapassava-o. São Paulo capital parecia sentir na pele as mudanças – suas roupas não lhe serviam mais, parecia ter perdido toda sua consciência corporal, trombava em todos os objetos possíveis e impossíveis e… Destacava-se numa multidão, alto e imponente como o próprio arranha-céu do Banco do Estado.
São Paulo Estado estufou seu peito e ergueu o queixo com um sorriso de lábios fechados, satisfeito e concordando silenciosamente com seus próprios pensamentos. À sua frente, seu filho, ao descer do degrau, se desequilibrou em falso e quase levou ao chão os humanos que o amparavam – mas o mais velho mal notou, preso demais em suas perspectivas futuras e suas conquistas em escala nacional (e por que não internacional?). Não demorou quinze minutos até que o município estivesse de volta com suas roupas comuns, jogando o carnê de pagamento em seu colo.
"Porque está aí rindo sozinho?" Júnior indagou, uma mão na cintura. Paulo olhou para as meias escuras à mostra por causa da barra curta com graça.
"Trinta anos atrás e estaria sendo chamado de pervertido por sair se amostrando assim, sabia?"
"Hahaha, quer um palco também?" Levantando-se, o paulista colocou novamente seu terno e vestiu o chapéu escuro em seus cabelos penteados para trás enquanto o paulistano recolhia seu guarda-chuva, cobrindo-se com um sobretudo emprestado do patriarca paulista.
"Vai ficar mais engraçado se eu te obrigar a pagar por todo esse guarda-roupa." Paulo Júnior rangeu os dentes.
"Não se eu te pôr num asilo primeiro."
"Como?" Foi a vez da cidade rir do olhar indignado do mais velho.
O vento frio e o cheiro de cigarros os acompanhava no ar enquanto seguiam pelas curvas em direção a praça da Sé e ao Palácio do Governo, céu nublado como uma redoma protetora do momento em que as duas representações entendiam-se somente por olhares bem-humorados.
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Crescimento
Ficção HistóricaSão Paulo da década de 40 crescia vertiginosamente - e as calças em suas canelas, como constava o Estado, eram a prova viva disso.