Prólogo

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BIANCA

Jogo o cabelo para trás com ambas as mãos, as longas unhas — vermelhas como vinho e reluzentes —  roçam meu couro cabeludo com um prazer agressivo, afiadas como navalhas, ansiando para serem usadas para algo mais divertido do que ajeitar cabelo. Ergo o queixo, e analiso meu rosto. 
Para o meu alívio, herdei as feições ossudas e angulosas da minha mãe, o osso do nariz perfeitamente liso. E os olhos, esses são do meu pai, sem vida, impiedosos, frios e desejosos. Sempre tive vontade de rir ao observar meu próprio reflexo, o equilíbrio perfeito entre a beleza e a agressividade que criaram em mim.
E no final, aquele velho miserável estava certo. Ninguém jamais desconfiaria de uma aparência angelical e delicada como essa.
Seu plano era o mais estúpido possível, algumas mudanças durante os anos foram suficiente para torna-lo perfeito. Os anos a sua sombra valeram a pena, a hora de deixar a escuridão e ganhar os holofotes finalmente está chegando.
Esperei por isso a minha vida inteira.
Puxo um tufo de cabelo e vejo as raízes, já pretas, começando a sobreporem os fios brancos. 
Aperto com força o punhado de fios entre os dedos e estico-os, as raízes escuras ainda mais visíveis do que antes. Arranco-os da cabeça. A dor latejante é familiar, não me importo com ela. Não é a primeira vez que me livro dos fios escuros dessa maneira, cortando o mal pela raíz.
A maioria dos fios escorregam da minha mão, mas observo enojada os poucos que se sustentam na palma.
Realmente odeio o cabelo dele. Odeio ter o mesmo que ele. Queimo os que restaram entre meus dedos na chama da vela em cima da mobília desgastada.
Ouço três batidas na porta às minhas costas.
— O que você quer? 
A maçaneta gira e vejo pelo espelho, Adamant adentra o cômodo.
Ela cruza os braços e apoia um dos ombros no batente da porta, pouco confortável.
— Sinto muito pela interrupção…
— Espero que tenha um bom motivo para isso — interrompi suas desculpas esfarrapadas.
Adamant encara meus olhos pelo reflexo do espelho.
— Eles chegaram.
Eles finalmente chegaram. 
Encaro meus próprios olhos, sedentos pelo prazer da dor, no espelho. O momento finalmente chegou. Um sorriso divertido e venenoso desabrocha nos meus lábios. Estava ansiosa por esse momento há meses.
— Você está...sorrindo? — Adamant hesita em prosseguir. Ela pode não ser tão ambiciosa, mas não é burra.
Giro o corpo para encará-la olho no olho. Apoio as mãos na mobília, jogando as costas para trás. 
— Me sinto...radiante.
— Nada a preocupa, senhorita? — Adamant se afasta do batente da porta, mexendo os braços e se curvando cada vez mais, diminuindo de tamanho.
— Por que me preocupar com marionetes? — Bato uma das unhas no lábio inferior, cortando a boca e sentindo o gosto familiar de sangue — Elas fazem o que mando.
Coloco na boca o dedo manchado de sangue, saboreando seu sabor.
O tremor corriqueiro percorre meus nervos do braço. Aquele formigamento embaixo da pele, atravessando meu corpo dos pés a cabeça em questão de segundos que tira o ar do meu peito.
Minha mão, apoiada sobre a mobília, vacila e apoio o cotovelo para me sustentar.
Adamant se apressa em minha direção, ergo uma única mão e ela para imediatamente.
— Não me toque.
Não preciso de dedos asquerosos em volta de mim.
— A senhorita deveria tomar mais cuidado — ela dispara.
Ergo os olhos com indignação. Endireito a postura sem sua ajuda e a dor passa em instantes.
— Se me importasse com a sua opinião, você não estaria usando essas roupas hoje — arqueio as sobrancelhas — se você quer ter seu cargo de volta, não vacile como da última vez.
— Eu só quis ajudá-la e…
Caminho com passos firmes até ela e posiciono o dedo indicador sobre seus lábios. Ela se cala imediatamente.
Ando a sua volta. Analisando suas roupas, sua postura, suas intenções. Por mais que odeie aquele imbecil, ele me ensinou que as traições podem vir dos lugares mais improváveis. Não relaxe, mesmo envolta daqueles que te juraram lealdade, as pessoas se vendem por quem pagar mais. E se você quer evitar o desprazer de ser traído, sempre ofereça o valor mais alto.
Qualquer crueldade pode ser facilmente disfarçada por palavras adocicadas e qualquer traidor pode ser condescendente quando conveniente. Então, dê um pouco de poder para conhecer a verdadeira face daqueles que se dizem submissos.
Seguro ambos os ombros de Adamant e colo meu rosto ao lado do seu.
— Olhe — aponto para seu reflexo no espelho — não preciso de ajuda espontânea, preciso de uma comandante.
— Achei que esse fosse o trabalho de Mark? 
— Por hora, é, mas ele ficará ocupado demais daqui para frente e você é uma das melhores candidatas que tenho para o posto — agarro seu queixo e fixo seus olhos para o espelho — imagina, a comandante que irá liderar seu povo para fora do inferno. É isso que estou te oferecendo se não arruinar essa noite. Será muito mais do que era antes.
Solto Adamant. Um brilho sonhador passa por seus olhos enquanto ela vislumbra a si mesma com as fardas da nossa nobreza, guiando meu exército pelas terras da superfície. 
Decido acrescentar detalhes à ilusão e com mais um lampejo de sonhos, um único grão de poeira comparada com a extensão do meu poder, Adamant enxerga a alegria do seu povo caminhando para fora daquele inferno. Os sorrisos nos rostos das famílias finalmente conquistando sua liberdade e a tão sonhada vida sob a luz do sol.
Até mesmo os assassinos impiedosos tem desejos. Entregue a eles o que querem ver e se torne o salvador dos miseráveis.
— Estou te oferecendo a chance de ser a pessoa que guiará nosso povo para a liberdade.
Cesso a ilusão quando me satisfaço.
— Não vou decepcioná-la — ela promete.
— Sei que não vai — passo uma das mãos em sua bochecha.
Adamant faz uma reverência formal e caminha para fora da sala.
Apanho a taça de vinho da mobília, já pela metade, giro seu líquido uma vez e bebo, saboreando cada gole da bebida alcoólica. 
Fecho os olhos antes de terminar o vinho e minha mente entra em trabalho. A parte mais divertida das ilusões sempre foi criar o cenário, e hoje, meus convidados terão a honra de conhecer minha obra prima.

A Cidadela Perdida - Os Renegados vol.2 (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora