O Jardim

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ROSIE•

— Eu não acredito que vocês saíram escondidas! — A avó da Amy exclama, batendo a porta atrás de si assim que entramos.
— Foi tão rápido… — Amy resmunga, mas ciente que qualquer um deles pode nos pulverizar em um piscar de olhos  — O que poderia ter acontecido? Nós não saímos daqui há dias.
— O que poderia ter acontecido? — Brax fala rápido, seu rosto adquirindo tons avermelhados. Eu e Amy encolhemos — Rotten poderia tê-las encontrado, ou então Endrick! Demônios poderiam estar à espreita, Mark…
— O que tem Mark? — Amy indaga apressada.
— Ele não está foragido? — Falo logo em seguida.
Minhas mãos soam.
Brax bufa irritado. 
Não temos notícias de Mark desde sua declaração de traição ao Brax no início da primavera do ano passado. Talvez ele nunca tenha sido fiel a Brax, de qualquer forma, seu paradeiro é um mistério, assim como o dos outros. Nós sumimos do radar deles, e eles sumiram do nosso. Simples assim.
— Vocês duas. — Ele aponta para a avó da Amy e para Sara. — Lidem com elas, não estou com paciência agora. Tenho muita coisa para pensar.
Brax sai da sala pisando duro, revelando a mesma genética explosiva de Arnaldo. Apesar de que é a primeira vez que o vejo irritado dessa forma. Ele geralmente costuma ser alegre e descontraído, raramente perde a compostura.
— Vocês não respondem as perguntas, nunca. O que estão escondendo? — Continuo a conversa com amargura na voz. — Não podem ficar nos jogando para escanteio sempre…
— Rosie, pare! — Sara adverte. — Você não sabe o que realmente está falando…
— E você nunca quis contar nada, não é? — Meus olhos ficam marejados, mas não derrubam uma lágrima sequer. — Você deixou que eles pagassem o preço, ou melhor dizendo, que a gente pagasse, mesmo sabendo da verdade.
Sara me observa, incrédula. Se não fosse pelo comprimento do cabelo, a diferença de idade, a cor dos olhos e as feições endurecidas de Sara, seríamos gêmeas. Sempre gostei da nossa semelhança quando era criança. Hoje quero me parecer o menos possível com ela.
— Não sei do que está falando. — Sara fala séria, mas o canto direito da sua boca treme sutilmente. Ela está nervosa.
— Sim, você sabe. — digo com frieza. Não tinha dito nada tão direto a ela sobre o assunto desde que nos reencontramos, em Novembro.
Decidi guardar a situação para mim. Não quero assumir que aquilo é verdade, é absurdo demais para ser verídico. Não quero acreditar que eles foram capazes de fazer uma coisa dessas, de serem tão injustos.
— Eu esperava mais de você. — A avó de Amy fala de repente.
— Eu sei, eu também. — Minha amiga fala com exaustão. — Há praticamente três meses, depois que nos deixou em Kurlin, não fazia ideia de onde você estava. 
— Estava tentando evitar que... — Ela começa com a mesma história evasiva que nós duas já estamos cansadas de ouvir.
Sara acena com a cabeça, encorajando suas palavras. 
— Vó, não estou afim de ouvir essa desculpa de novo. — Amy levanta a mão com delicadeza para censurar a avó, sem qualquer maldade ou rebeldia na voz.
Ela levanta do sofá e faço o mesmo. 
— Amy, Rosie... — sua avó fala com pesar na voz.
Paramos no batente da porta entre a sala e o corredor que leva para a cozinha. Amy olha para ela por cima do ombro.
— Eu só preciso...seguir em frente, está bem? — Ela suspira. — Vou treinar. Você vem, Rô?
— Mais tarde — sorrio com empatia, os lábios quase sumindo.
Seguimos para lados opostos no corredor.
A sacola de plástico bate vigorosamente na minha coxa enquanto caminho decidida ao perceber que Sara vem atrás de mim.
Não estou pronta para conversar com ela, mas mesmo assim:
— Rosie! — Sara segura meu braço quando estou quase no final do corredor.
Puxo meu braço, mas ela o segura com força. Suas unhas cumpridas incomodam minha pele. Suas mãos são fortes, assim como imaginei que seriam depois de ter minhas memórias devolvidas.
— Estou aqui para te ajudar, para cuidar de você. — Ela fala amorosamente.
— Tarde demais para isso, irmã — minha garganta está áspera como uma lixa de parede — Quando eu era uma criança, e precisava de uma irmã mais velha, você estava...estava…
Não consigo completar a frase. Sinto que minha garganta foi selada com concreto, impedindo que despeje todas as palavras que quero pronunciar.
A mão de Sara afrouxa e recolho meu braço de pressa. Ela leva as mãos, tremendo, até sua boca. Seus olhos ficam arregalados.
— Então, você realmente sabe? — Sara pergunta como um sussurro inaudível.
— Sei.
Não importa quanto tempo tenha ficado presa nessa casa e longe da adrenalina para pensar nesse assunto, eu simplesmente não consigo chegar a uma conclusão sobre meus sentimentos e quanto mais Sara tenta me impedir de seguir meu caminho, tenta manipular minhas escolhas dizendo que este não é meu lugar, que não posso fazer nada, que não é meu dever ir a luta...quanto mais ela tenta me convencer a desistir, mais raiva sinto dela. 
Quero muito conversar com ela, mas enquanto agir dessa forma, como uma covarde querendo fugir, não consigo olhá-la como a irmã mais velha que admirava tanto. Sara era meu exemplo.
Sara encosta as costas na parede e deixa seu corpo deslizar por ela até se sentar no chão, com as pernas encolhidas. Seu olhar está perdido no vazio, provavelmente em suas memórias mais sombrias.
Também fiquei assim quando descobri a verdade. Sinto uma pontada de pena dela, mas vê-la dessa forma, só comprova que tudo que vi nas memórias que Brax me deu quando fomos a sua casa, é a mais pura e cruel verdade. No fundo, torcia para que fosse mentira.
Saio sem falar mais nada, deixando Sara no corredor silencioso.
Há alguns dias atrás Amy me mostrou um jardim secreto no coração da casa, é para lá que vou na tentativa de clarear os pensamentos.
Abro a porta que, na teoria, deveria levar ao sótão. O cômodo até se parece com um, mas só se a pessoa não ler as palavras gravadas na madeira escura da porta.
— Aimara Aiyra, aracê. — Digo e as palavras começam a brilhar em azul celeste. Ed disse que essas palavras são de uma língua indígena antiga e querem dizer algo como “Árvore filha, ao canto dos pássaros pela manhã”.
Não faz muito sentido para mim, mas não penso muito nisso, o bilíngue do grupo é Eduardo. A porta se destranca sozinha, gira a maçaneta e abre sem que eu sequer encoste nela. Subo a longa escada.
O jardim secreto não é tão grande. É como uma estufa, com grades brancas em sua volta e vidro — com certeza enfeitiçados — para que o sol possa brilhar através dele. Há muitas plantas, a maioria eu nunca vi na vida, desde raízes grossas e rochas, até árvores com folhas que, ao anoitecer, ganham luz própria. 
Alguns animais — acho que são animais — vivem entre as flores e as folhas, entre eles estão pássaros coloridos e joaninhas neon. Pelo menos as araras e os tucanos dão um ar de familiaridade. Há um pequeno lago cintilante com carpas e tartarugas, e seu fundo é revestido por pedregulhos de diferentes tamanhos e cores, capim cresce em suas bordas.
Desabo em um banco de ferro branco no centro do jardim sobre um chão de pedras desalinhadas. Um coreto apresenta-se mais à frente com uma mesa pequena e almofadas embaixo da construção cheia de detalhes. Raízes, caules, troncos e folhas crescem envolvendo a construção em um emaranhado verde.
Do meu lado direito há um mezanino na borda da redoma da estufa, uma cascata de folhas descem dele até o chão e em cima do mezanino, grandes vasos retangulares com tomates, alfaces, cenouras, abacaxis, xuxus...a horta particular de Brax. Ele adora contar sobre seus vegetais para nós, mas ninguém além dele pode tocá-los. Tóxico. Eu queria arrancar uns tomates do pé e comer.
Colunas de flores de diferentes espécies descem do teto, mas não chegam a atingir o chão. Algo nesse lugar me acalma, meus ombros relaxam sobre o encosto gelado do banco. Não tinha percebido que minha mente estava lotada de pensamentos até começar a esvaziá-la no jardim.
— Que manhã, hein? — Falo para uma arara vermelha que pousa à minha frente. Ela me olha confusa.
Eu estou confusa. Depois de derrotar Cuca muitas coisas mudaram. Minhas memórias antigas estão cada vez mais nítidas, o que só me faz odiar ainda mais a situação.
— Às vezes eu queria ser um pássaro que nem você para fugir de toda essa confusão — a arara inclina a cabeça para a direita. — não acredito que estou falando com uma arara.
— Os animais nos compreendem, muitas vezes, melhor do que os humanos. — Uma voz surgiu atrás de mim.
— Achei que só eu e Amy sabíamos como entrar aqui. — Digo receosa.
Merlin anda até a arara e acaricia sua cabeça.
Nosso primeiro encontro não foi nada agradável. Quase matei alguns do povo dela, e ela mandou me matarem. Eu estava enfeitiçada na situação, mas saber desse detalhe não desfez o clima de desconfiança entre nós. Além de ela ter sido extremamente indelicada ao falar do meu povo.
— Você esqueceu de fechar a porta. — Ela explica.
Arqueio as sobrancelhas em sinal de compreensão. Merlin passa alguns dias na casa depois que Runa decidiu se juntar definitivamente à Irmandade, mas ela alterna alguns dias entre sua aldeia e aqui. A ligação que ela tem com Runa é muito forte e intensa para que, mesmo afirmando veementemente não confiar totalmente nos membros da Irmandade, faça visitas periódicas por causa do amigo.
Entretanto, sua presença continua a me incomodar. Parece que Merlin sempre está nos mesmos lugares que eu.
Sequer cheguei a pedir desculpas pelo incidente na vila dela.
— Merlin. — Chamo-a com os dedos entrelaçados e o cotovelo apoiado nos joelhos. — Na vila...não era eu…
— Eu sei. — Ela faz um sinal para me censurar e caminha até o banco, a arara fica insatisfeita por não estar mais recebendo carinho e voa para longe. — Eu deveria ter percebido antes, fui muito…
Ela não completa a última frase. O silêncio desconfortável paira sobre nós fazendo pressão sobre minhas entranhas. Apesar de saber que é a opção mais inteligente, não quero dar o braço a torcer e lhe pedir desculpa quando ela também está errada.
— A vila não costuma receber novos visitantes. — Ela conta. — Não posso deixar meus dragões correrem perigo, ainda mais com uma guerra se aproximando.
— Entendo. — Comento, pouco interessada nas suas palavras.
Merlin me olha de forma mortífera, seu maxilar se contrai.
— Entendo. — Ela levanta do banco. — Escutei a conversa com sua irmã. Claro que não propositalmente.
Meu rosto queima. Não esperava que mais alguém escutasse nossa discussão. É um assunto particular.
— Não sei do que se trata e também não me interessa, assim como você não liga para os meus motivos — ela continua e vira o rosto para mim — mas se você estiver escondendo algo, principalmente se for algo que possa prejudicar Runa e a mim, irei descobrir, e não hesitarei em tomar as atitudes necessárias.
Minha expressão se endurece e arrumo a postura. Merlin não é amedrontadora para mim.
— Você é a estrangeira aqui, Runa também é membro da Irmandade — Digo alto e em bom tom. — Tomaria cuidado se fosse você. Até onde sei, a Irmandade não costuma aceitar muito bem os forasteiros.
Uma pequena cicatriz no lábio inferior dela treme. Nós duas estamos nos esforçando para manter uma conversa civilizada apesar das ameaças veladas.
— Sua irmã também não é um membro.
— Como se eu ligasse para isso — um riso de deboche escapa.
O rosto de Merlin se contrai em uma careta de desaprovação e então ela vai embora, seu longo cabelo balançando em perfeita sincronia enquanto caminha.
— Odeio essa mulher — sussurro, fitando o chão. 
Apanho um dos chocolates na sacola do mercado e mastigo mecanicamente enquanto permaneço no ciclo incessante de tentar esvaziar a mente e novos pensamentos bagunçarem o que tinha acabado de arrumar.

A Cidadela Perdida - Os Renegados vol.2 (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora