Deusa das Portas Automáticas

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1 mês antes
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•ROSIE•

- Você acha isso realmente necessário? - Amy pergunta atrás de mim enquanto passo pela janela do segundo andar.
- Ah, qual é, Amy? Não nos deixam sair mais para lugar algum. - Rebato, tentando convencê-la. - Além disso, será tão rápido como quando Ed corre com sua super velocidade.
- Então, por que você não pediu a ele? - Ela fecha a janela atrás de si, estamos totalmente no telhado agora.
- Ed é certinho demais para essas coisas. - Rio, mas não com maldade - e você é minha melhor amiga.
Amy me encara por alguns segundos, solta o ar dos seus pulmões e se rende.
- Está bem, mas me prometa que vamos voltar antes da reunião. Esperamos semanas para que Brax finalmente nos conte detalhadamente o que está havendo, não vamos estragar isso.
- É claro que vamos voltar a tempo - Sorrio, achando graça na sua preocupação. A Amy de algumas semanas atrás não levaria a situação com tanta seriedade. Ela amadureceu.
- Estou falando sério. - ela avisa.
- E eu também. Se perdemos, Sara vai me matar, e sua avó, além de te matar, vai me matar também. Não quero morrer duas vezes. - Explico, lembrando da minha péssima relação com minha irmã - Vamos, me siga.
Equilibro-me no telhado escuro da casa da Irmandade e sigo em frente até dar a volta completa, desviando das janelas. Aproximo-me da beirada das telhas.
- Você não acha que vão nos pegar dessa vez? Eles estão começando a desconfiar. - Ela pergunta, e sei que está lembrando do nosso último passeio proibido.
Há três dias, quando voltamos seis horas da tarde para a casa, decidimos entrar pela mesma janela do segundo andar. No exato momento em que estávamos fechando a janela, Arnaldo entrou no corredor. Ele fez algumas perguntas e conseguimos despistá-lo, mas continuou desconfiado.
Não é fácil convencer Arnaldo.
A verdade é que estamos estritamente proibidos de sair da sede da Irmandade. Todos os Renegados permanecem em quarentena até segunda ordem. Mas é difícil aceitar isso quando se tem tantas coisas novas para descobrir nas ruas. Depois do contato com o lado mágico cheio de criaturas, deuses e espíritos da natureza, é como se meu mundo tivesse ganhado mais cor. Reparo em pequenos detalhes que antes ignorava. Procurar seres mágicos disfarçados nas aglomerações tem sido meu passatempo preferido. Sinto a sensação de magia e poder pairar no ar por todo o lugar, uma sensação tão única que é indescritível, algo que jamais tinha sentido antes. Não consigo ignorar isso.
- Cadê seu senso de aventura Amy? - Rio, tentando afastar a memória de Arnaldo da sua mente - Não lembro desse medo todo das outras vezes que saímos. Além disso, quem quis sair pela primeira vez foi você.
- Eu sei. E você aceitou. - Ela faz questão de lembrar. - Sou uma péssima influência.
O som zombeteiro na sua voz só deixa mais claro que, mesmo se quisesse, ela também não conseguiria seguir essa ordem de prisão domiciliar. Não consigo me conter e rio alto. Somos duas mentirosas patéticas, nos enganando para sufocar o sentimento de culpa pela desobediência descarada.
- Shhh...vão nos escutar assim! - Ela adverte com pressa e imediatamente levo as mãos à boca, mas ela também mal consegue segurar o riso.
Depois de alguns passos, continuo com mais calma:
- Sei que está preocupada com Arnaldo ter percebido, talvez devêssemos ter esperado mais tempo mesmo, mas não aguento ficar presa como um pássaro engaiolado.
Ela concorda com a cabeça, decidida e compreensiva.
Nós sempre fomos boas parceiras de crimes. Confiaria minha vida a ela, de olhos fechados.
Por mais que a casa seja absurdamente fantástica, três meses sem ver a luz do sol me incomoda, preciso de um momento de paz longe daquele lugar. Três meses, quase quatro. Esse é o tempo que estou longe dos meus pais, eles não entraram em contato desde que pisei em Kurlin. Foi o primeiro natal e ano novo que passei longe deles.
Finco meu pé na raiz que cresce do solo até a telha mais próxima da parede, viro de costas para a rua e começo a descida, minhas mãos raspam na aspereza do tronco, ambas já apresentam calos devido as tantas vezes que desci por aqui nos últimos dias.
Aterrisso com cuidado no asfalto. É manhã, bem cedo, e os prédios de São Paulo ainda fazem sombra sobre a casa tornando-a sinistra e quase invisível. Por fora a casa é totalmente - inclusive as janelas - pintada de Vantablack, uma substância feita de nanotubos de Carbono que absorve até 99,965% de radiação - é a substância mais escura conhecida. Quando a luz a atinge, ao invés de ser refletida, fica presa entre os nanotubos, parecido com o que um buraco escuro deve fazer.
Essa coloração não permite a identificação do relevo da casa. Para encontrar a porta é necessário ser um membro marcado da Irmandade ou que algum deles abra a porta para você, por isso uma das primeiras coisas que Brax fez, foi nos filiar a Irmandade, marcando nossos pulsos com o brasão - uma constelação de quatro estrelas - já que a mesma acredita na coletividade, que não se vencem guerras agindo sozinho, e é composta por quatro membros de grande influência. Essa é uma das poucas coisas que sei sobre esse lugar.
Salto para o chão emitindo ruídos ao raspar as botas no asfalto. Amy me olha com uma expressão de censura.
- Foi mal. - Levanto as mãos demonstrando arrependimento.
- Vamos logo antes que alguém perceba. - Ela fala apressada.
- O mercado é logo ali. - Tomo a frente para nos guiar.
Amy acena com a cabeça e seguimos pelas sombras até a esquina da viela, me esgueirando pelas paredes. Olho para os dois lados antes de entrar na avenida movimentada por homens de terno e mulheres de social que caminham apressadamente para seus respectivos compromissos.
As buzinas dos motoristas raivosos anunciam o caos da cidade paulista. Prédios estendem-se por toda a avenida com ciclovias e semáforos trocando de cor infinitamente.
- E pensar que o resto do pessoal não sabe que estamos bem do lado da Avenida Paulista. - Sorrio de forma boba.
- Brax tem talento para esconder casas no meio do caos. - Ela diz. - As pessoas estão preocupadas demais consigo mesmas para repararem em uma casa toda preta, e as que reparam, simplesmente não ligam e perdem o interesse tão rápido.
- Você andou observando-os bastante, hein? - Constato.
- É observando os outros que você aprende quem eles são. - E talvez porque ela odeie que prestem atenção nela, então foca em observar os outros - você deveria tentar ao invés de só ficar procurando criaturas mágicas por aí.
- Passei minha vida toda rodeada por humanos, mas não passei a vida toda rodeada de magia. A segunda é bem mais interessante.
Ela sorri com o canto da boca enquanto observamos um casal de idosos atravessar a rua na faixa de pedestre. Eles caminham com os braços dados, o senhor apoia uma bengala no chão e a senhora carrega uma rosa na sua mão livre. Amy sempre foi assim, analisando o comportamento dos outros a sua volta, enxergando beleza em coisas tão pequenas e bobas. Espero até que o casal tenha atravessado para não interromper sua admiração, e então falo:
- Queria que fosse como nos velhos tempos. - Pondero e suspiro, ela me olha confusa. - Sabe, quando vínhamos aqui nas lojas de café passar o tempo e só jogar conversa fora. Ou quando íamos à Liberdade acompanhar Ed em suas compras de mangás e comíamos em mercados duvidosos porque a comida lá é bem cara. Sinto falta de confiar meu destino nos biscoitos da sorte.
Sua expressão relaxa com essas lembranças, que agora parecem estar a anos de distância.
- É, mas também era assustador encontrar pessoas bêbadas a cada esquina quando tinha algum evento. - Ela lembra.
Rio.
- Você não tem jeito mesmo. Deixe meu momento melancólico em paz. Quando isso acabar, vou fazer você ter uma vida mais social. - Passo meu braço por cima dos seus ombros.
- Não sei se gosto da sua ideia de mais social. - Ela me empurra para longe, sorrindo - continue andando para o tal mercado.
Andamos alguns passos até que ela esteja perto o suficiente novamente para me escutar no meio da multidão:
- Sabe, nem todo mundo novo que entra na sua vida é uma ameaça. - falo devagar.
Algo que ambas sabemos muito bem é que ela não é muito receptiva a novas amizades. Uma vez, quando consegui arrastá-la para uma das festas do ensino médio, um garoto se aproximou para puxar assunto, ela jogou um copo de refrigerante na camisa dele. Até hoje não sei exatamente o que ele falou para ela, mas Amy insistiu para irmos embora e jurou seu desgosto por festas de adolescentes.
- Um anão raivoso e um feiticeiro misterioso entram na lista de possível ameaça ou amizade? - Ela indaga sorrindo se referindo a Arnaldo e Runa.
- Isso foi diferente. Não tivemos escolhas, eles só entram nas nossas vidas, assim como Brax e Eldret. - Explico. - Você confia neles?
A última pergunta paira no ar e acho que ela não vai me responder.
- Confio. - Ela dá de ombros.
- E no Eldret? - Indago pensativa.
- Sim, por que não confiaria nele? Eldret nos forneceu treinamento quando não tínhamos quase nenhum, apesar de que sua arrogância e prepotência me irritam bastante - ela levanta uma sobrancelha de forma interrogativa. - Por que a pergunta?
- Nada não. Só estava pensando. - Encerro o assunto. - O mercado está próximo.
Caminhamos pelo mar de pessoas distraídas. Me esquivo de uma senhora que fala no telefone xingando alguém do outro lado da linha, esbarro em um homem de terno preto e quase derrubo seu café. Ele esbraveja, peço desculpas e me afasto o mais rápido possível.
Outra mulher passa e acerta suas sacolas de compras no meu calcanhar. Antes que possa reclamar, Amy puxa meu antebraço para seguirmos em frente sem mais contratempos.
Depois de alguns empurrões e tropeços, estamos em frente ao supermercado ultra chique - talvez eu devesse vender um rim antes de entrar nesse lugar.
Entramos na loja, o chão, as paredes, o teto, é tudo feito de mármore. Um banquete de fartura e requinte para as pessoas endinheirada:
- Me sinto a deusa das portas automáticas quando elas abrem para eu passar. - Comento encarando as portas de vidro com finos detalhes de arabescos que acabamos de atravessar.
- Tenho certeza que essa deusa não existe - Amy provoca e dá uma piscadela com um olho só.
Sei que ela está se referindo ao panteão tupi-guarani. Aproveitamos o tempo e os livros da Irmandade para estudar mais sobre eles depois de literalmente ter dado de cara com Iara, a deusa das águas.
- Como são ultrapassados. Conseguem construir enormes prédios de mármore e manter um mundo todo em segredo dos genéricos, mas não tem uma deusa das portas automáticas. - Brinco, achando graça. - Então definitivamente sou eu.
- Para de ser doida - Ela adverte enquanto me encaminho para as prateleiras mais próximas. - Vamos logo para o setor dos doces.
- Olha quem fala. - Resmungo.
- Onde fica o corredor de doces? - ela ignorou meu comentário.
- Não lembro muito bem, acho que é para lá.
- A-ha! Aqui está! - Ela anuncia com entusiasmo e sem querer bate seu braço em uma prateleira de plástico cheia de salgadinhos, derrubando tudo no chão.
Um funcionário nos olha como se realmente fossemos malucas, mas não falamos nada. Nos encaramos por alguns segundos em silêncio, morrendo de vergonha. As bochechas de Amy ficam vermelhas como pimentões. Não consigo segurar e começo a gargalhar da situação, lágrimas escorrem dos meus olhos.
- Tá, já chega Rosie. - Ela me censura.
- Não...dá... - falo quase sem ar, rindo. - Todo mundo te olhando, você tinha que ter visto a SUA CARA!
- Hilário Rosie, mas agora está todo mundo olhando para você. - Ela avisa, tentando reprimir um sorriso. - Dá para ficar quieta? Estão olhando para nós duas.
- Está bem, está bem - começo a me acalmar, finalmente. - Ai Amy.
- Vá na minha frente. Compre os doces, mas evite perda de dinheiro. - Ela fala com pressa. - Vou ajudar a recolherem os produtos que derrubei, já encontro você.
Assinto, aceitando a missão de economizar nosso dinheiro. Nessa hora sinto falta de não ter mais um celular para poder usar a calculadora dele. Não sou ruim em matemática, na verdade exatas sempre foi meu forte, mas tenho preguiça de fazer contas de cabeça.
Ainda secando os olhos com as costas das mãos de tanto rir, adentro o corredor adiante ao que Amy derrubou os salgadinhos. Minha busca frenética pelos melhores preços e maior qualidade começa.
Quando era pré-adolescente, lá para os meus treze anos de idade, acompanhava minha mãe em sua ida para as compras do mês, ou ficava em casa cuidando dos nossos irmãos. Depois que Sara foi embora de casa, minha mãe passou a nos levar sempre junto para todos os lugares. Não é exatamente fácil cuidar de duas crianças, uma de doze e outra de onze. Pelo menos não definiria como uma tarefa fácil quando você tem quatorze anos e seus irmãos querem brincar de esconde-esconde no meio das prateleiras.
Viro em outro corredor lotado de doces, meus olhos percorrem incessantemente a prateleira e esqueço de olhar para baixo até que meu corpo encontra outro muito mais baixo do que eu.
- Sinto muito - Digo apressadamente, sem sequer ter visto em quem esbarrei.
- Hum, típico. Preste atenção por onde anda - Uma senhora, com as costas extremamente curvadas arruma seu xale em volta dos braços enquanto resmunga irritada. Ela ergue a cabeça lentamente e fixa seus olhos em mim, com seu nariz pontudo indicando o centro do meu rosto - interessante.
A mulher dá um sorriso com alguns dentes faltando e, não por esse fato, mas sua expressão causa calafrios por todo o meu corpo. Seu interesse genuíno e seus olhos fixos nos meus deixam tudo mais estranho. Desvio o olhar, mas ela sequer se mexe, e se percebeu o meu desconforto não se importa com isso.
- Me desculpe pelo incomodo - Dou dois passos para trás.
Giro meu corpo para sair do corredor, mas a mão gelada dela agarra meu pulso. Seus dedos longos e cheios de veias, com unhas enormes e afiadas, me seguram ao lado dela.
- O que a senhora pensa que está fazendo? - Puxo meu braço para longe dela.
A senhora não me responde, mas ergue novamente a cabeça, sorrindo. Não um sorriso de felicidade, um sorriso de alguém que encontrou algo inesperado, inacreditável.
Ela continua sem me responder, sustentando um silêncio desconfortável. Ela não pisca enquanto seus olhos permanecem fixados em mim, analisando meus movimentos, minha respiração e absolutamente tudo que ela consiga captar com seu olhar. Me sinto extremamente mal por estar sendo observada com tanta obsessão e tento me afastar de novo. Dessa vez ela não segura meu pulso.
Sinto seus olhos em minhas costas enquanto deixo o corredor e minhas pernas fraquejam com a tensão de estar sendo observada.
- Daqui um mês - a voz rouca da mulher idosa soa.
Imediatamente olho para trás para ver se é comigo que ela está falando, mas não há mais ninguém no corredor. A senhora sumiu e duvido se realmente ouvi a última frase ou se foi fruto da minha imaginação. Um assobio extremamente alto e agudo soa do meu lado direito e tampo o ouvido imediatamente, cambaleio para o lado oposto, assustada com o barulho repentino.
Bato as costas em uma prateleira cheia de chocolates e bolachas, alguns pacotes caem nos meus pés. Giro a cabeça para as duas extremidades do corredor, mas ele continua vazio. Não há ninguém além de mim.

* * *

Depois de passar pelo caixa do mercado e seguirmos para a Irmandade, relato todo o acontecido com a senhora para Amy, que agora me olha confusa:
- Você tem certeza de que não tinha mais ninguém no corredor quando escutou o assobio? - Ela indaga.
- Tenho! - Exclamo pela décima vez - Já te disse, eu olhei e não tinha absolutamente ninguém.
- Então isso só é muito estranho, intrigante - Ela aperta as sacolas das compras com os braços.
- Ela ainda disse algo sobre...um mês. Pelo menos acho que foi isso - Calafrios sobem por minha espinha quando repito a fala da senhora em voz alta.
- Bizarro - Ela concorda virando o rosto para mim. - Vem cá, você vai pegar uma sacola ou não?
- Desculpa. Acabei me distraindo - retiro uma sacola de seus braços. - Às vezes acho que ando vendo coisas.
Suspiro. Há dias venho tendo vários sonhos estranhos, não pesadelos, apenas aleatórios. Na verdade acho que se encaixam mais na categoria memórias, porque elas são vivas demais, específicas demais e parecem reais. Não sonho com coisas absurdas ou guerras futuras, mas sempre com o passado, com momentos em que fiz contato com a magia durante minha infância e pré-adolescência e simplesmente foram apagados da minha mente.
- Rosie! - Amy adverte.
- Não adianta dizer que você também não tem se sentido assim.
Amy enrijece ao meu lado. Ela arregala os olhos como se tivesse visto um fantasma.
- O que foi? - Pergunto olhando para ela.
- Acho que nós duas teremos muito o que pensar agora. - Ela diz.
Olho para onde Amy encara fixamente. A porta da casa da Irmandade está aberta, revelando seu interior colorido. Primeiro sinto meu estômago revirar ao cogitar a hipótese de alguém ter conseguido invadir a casa, mas quando olho de novo, percebo que a situação é bem pior. Apoiados no batente preto está Brax, a avó de Amy e Sara, minha irmã mais velha, que deve ter resolvido fazer uma visita mais cedo do que tinha planejado. Todos estão com expressões sérias.
- A gente vai morrer. - Sussurro apavorada.
Amy concorda com a cabeça mecanicamente. Engulo em seco e suor começa a escorrer da minha testa.

A Cidadela Perdida - Os Renegados vol.2 (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora