Zequinha tropeçou, praguejou, mas continuou correndo. Não importava que o Calçadão da cidade de São José dos Campos estivesse lotado, com as pessoas correndo com as compras de última hora para o dia das mães. Ele tinha que continuar correndo.
O suor ardia em seus olhos. Apesar do dia frio de Maio, o garoto deixará de se importar com isso há algum tempo. Ele piscava, esbarrava em alguém e continuava a correria. Alguns seguranças gritaram com ele. Compradores indignados o ameaçavam. Mas se tinha algo que ele sabia em seus quinze anos de sabedoria, era que, negro que corre e é pego, apanha.
Um assobio soou, alto, em algum lugar atrás dele. Zequinha xingou. Eles estavam chegando perto.
Fazendo uma rápida retrospectiva, talvez não devesse ter aceitado o jogo. Mas quando expôs sua ideia para sua mãe, ela foi clara. Para que ele tivesse êxito em ter os folclóricos como aliados, precisava mostrar que era digno deles. Sua mãe só não sabia que, por causa do seu conselho,o filho estaria correndo e lutando contra três seres místicos poderosos bem no meio do centro da cidade.
Todos os seus recursos de sobrevivência já eram. Ficou sem flechas uns quinze minutos atrás. As adagas e machadinhas se foram. Lhe restava o escudo, pendurado nas costas. Ele cogitou deixar o escudo no chão, mas não podia. Foi presente do seu avô, herança de família. Veio da África com seus antepassados. Por mais que pesasse e difucultasse a fuga, o escudo ficaria.
Quando chegou no cruzamento da rua do Mercado, seu coração foi parar na boca. Como aquele filho da mãe conseguiu chegar ali primeiro?
Do outro lado da rua, um garoto negro, como Zequinha. Aparentava uns doze anos. Seus cabelos pegavam fogo. Seus pés estavam virados para trás. Uma armadura de fogo percorria seu corpo. Numa mão, uma lança de bronze. Na outra, um escudo africano como o que Zequinha levava nas costas.
Zuiu, o líder dos curupiras de São José dos Campos (ou, ao menos, era isso que ele dizia sobre si mesmo), sorriu para ele. Zequinha odiava quando Zuiu sorria.
As pessoas desviavam de Zuiu, mesmo sem vê-lo. Zequinha supunha que isso era bom. A magia de camuflagem que os folclóricos usavam não os tornava apenas invisíveis. Fazia com que mortais desviassem deles. Se não fosse isso, as chamas da armadura e dos cabelos de Zuiu acabariam com muitos presentes do Dia das Mães daquele ano.
Sem dar chance do outro falar nada, Zequinha aproveitou que um carro passou sem respeitar a faixa de pedestres, e correu para a direita. Buzinadas e gritos ficaram para trás enquanto ele dava tudo de si naquela última corrida. Tinha que chegar no Bosque da Prefeitura.
Seu sexto sentido gritou em sua cabeça. Ele ainda não estava acostumado às transformações que o Despertar fez nele. Velocidade, força, habilidade em batalha. Sem contar no aumento dos cinco sentidos. Herança de seu pai, que recebeu de seu avô. Um poder que estava na família há gerações. E o danado do sexto sentido: um tipo de sentido aranha, versão afrobrasileira.
Ainda correndo, Zequinha pegou o escudo com a mão direita e ergueu acima da cabeça. Três flechas acertaram o escudo. Uma permaneceu fincada ali, a dois centímetros de sua mão. Ele abaixou o escudo, enquanto a rua se inclinava para baixo.
Correndo por cima das lojas estava uma garota indígena. Os cabelos vermelhos e curtos brilhando ao sol. Pinturas tribais no rosto. Um sorriso zombeteiro nos lábios, de onde despontavam pequenas presas. O coração de Zequinha bateu mais forte, mas ele sabia que, do mesmo jeito que Dairane sorria, podia lhe enfiar uma daquelas flechas em suas pernas.
Para provar isso, uma das flechas da caipora raspou seu tornozelo. Zequinha tropeçou, praguejou, limpou o suor do rosto. Se não fosse um desperto, já teria morrido pelo menos cinco vezes naquela brincadeira.
Ele ainda matava a Cumade Filosinha por colocar os guardiões da floresta naquela perseguição.
Seu coração batia acelerado. Faltavam, talvez, três minutos para chegar ao abrigo. Ele riu, uma risada de desespero. Era provável que em três minutos ele estivesse estirado no chão, com uma lâmina atravessada no corpo.
Não, eles não o matariam. Ele sabia que não o matariam. Era o que ele achava. Noventa e nove porcento de certeza. Uns noventa porcento de certeza, vai.
Certeza que diminuía a cada flecha da caipora. E a cada metro que o curupira se aproximava dele.
Zequinha avistou a entrada do bosque: um posto de guarda no meio da cerca de arame farpado. Do outro lado da rua. O ideal seria aproveitar o embalo e pular a cerca. Ali estaria seguro.
Foi quando ele viu Cumade Filosinha sorrindo em frente ao posto de guarda. Tinha uma machadinha em cada mão. Ninguém notaria nada demais nela. Uma criança de onze anos, com traços e pinturas indígenas. Cabelos lisos como macarrão escorrido.
Ele soube que ela faria besteira assim que a viu levantar o pé.
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Pega-pega com Folclóricos
FantasiaBaseado no folclore brasileiro e na mitologia iorubá; com referência ao anime Pokémon. Com uma grande influência do universo de Percy Jackson. Este conto une lendas e passados indígenas e africanos em uma história curta, mas com aventura e conceitos...