O livro das sombras

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Orgulho, vaidade, desejo: as chamas que consumirão o mundo

Calla deslizava os dedos longos pelas páginas antigas do livro, as letras dançavam mudando de lugar, criando formas, reorganizando palavras, traduzindo a si mesmo.

Demorou a compreender o pacto que fizera ao aceitar o livro e a lágrima de Ojezed. Nerian lhe dava poder por meio da pedra, mas também a vigiava através dela, conhecia cada pensamento e sentimento, influenciava sensações físicas, mas ela não se ressentia disso. Ao contrário, nunca havia experimentado o prazer do modo como o mestre lhe apresentava.

Palavras que eram carícias invisíveis, promessas aquecendo a alma; e agora, o livro. Uma coisinha cruel feita de matéria de tudo que ela conhecia. As páginas picavam as pontas dos dedos e faziam o sangue gotejar, e nisso havia um prazer letárgico. Ela se demorava namorando as letras feitas do próprio sangue.

— Conhecimento é poder. — As palavras de Nerian soavam absolutamente clichês, mas agora ela sentia esse poder fluindo nas veias. — Poder tem um custo. — Ele havia dito também, por isso ela precisava ser cuidadosa, não deixar que o livro a bebesse toda de uma vez.

Cada página daquela coisinha cruel era uma deliciosa tentação que poderia levá-la à morte, mas era também conhecimento de um aspecto do mundo que ela jamais sonhara. O invisível se desnudava em formas que matemáticos e físicos se matariam para conhecer, mas era ela, Calla, quem recebia aquele conhecimento como presente do mestre.

O Mosteiro Escola apinhado de alunos, padres e freiras, pessoas nas ruas antigas da cidade; tudo isso gradualmente perdeu a importância. Todos seriam insetos, brinquedos, alimento para as criaturas que estariam por vir. Mas ela já não era como eles, havia sido escolhida e mesmo após o retumbante fracasso no acampamento, fora perdoada.

Não cometeria o mesmo erro novamente: convocar a primeira coisa que cruzasse o limiar das sombras. O mundo estava cheio de espíritos diabólicos ocultos nas sombras, à espera de um corpo para transitar no mundo material, mas ela não se contentaria com outro fracasso.

O livro continha todos os tipos de conhecimento, incluindo história, que revelava aos poucos, entre um sortilégio e outro, a história perdida do mundo que foi tragado por uma guerra entre seres capazes de manipular a matéria, alçar voo pelos céus, rasgar os mares com colunas de fogo.

A história de generais que faziam rios de sangue escorrer sobre as terras rebeldes em nome de Nerian. Seus nomes apareciam em elegantes letras dançantes, cada um com atributos peculiares. O mais elevado deles surgia como um imenso lobo de pelagem escura e olhos faiscantes, uma ilustração tão viva que poderia saltar da página e devorá-la.

Não havia um nome para o lobo, apenas um estandarte que parecia ondular atrás dele. Ao virar a página, o lobo parecia metamorfosear em uma forma masculina com braços poderosos e uma espada flamejante e diante dele generais prostrados, revelando a própria animalidade. Um corvo de imensas asas negras como um anjo distorcido e cruel, uma raposa castanho-avermelhada, um tigre albino e um dragão.

Quatro exércitos, quatro generais sob o comando do mesmo homem, agora expondo imensas asas cuja envergadura o fazia parecer divino e ao mesmo tempo terrível. Sob a cabeça não havia um elmo, não como os generais em forma humana, havia uma tiara simples.

Eu quero ele. — Calla pensou percorrendo o desenho com o indicador, sentindo o sangue fluir para a página dando mais nitidez e movimento para a imagem.

Está além do seu alcance — respondeu Nerian através da pedra.

— É você? — perguntou esperançosa.

— Não — respondeu, e Calla temeu ter ofendido o mestre, mas a voz rouca e sedutora prosseguiu gentilmente. — Não há vergonha em admirar e desejar um belo espécime como ele, mas nem mesmo Hécate poderia pôr grilhões em tal criatura, então deixe-o.

Calla sentiu a força invisível guiar suas mãos para os quatro generais.

— Não se deixe enganar pela força bruta das formas animais: Argúrio, o corvo; Verônica, a raposa; Lian, o tigre e Mordred, o dragão. — A imagem do tigre queimou na página e o dragão teve a cabeça decepada pelo corvo. — Os dois últimos foram tolos o bastante para tentar morder a mão que os alimentava. Você entende?

— Traíram o senhor.

A voz a acariciou suavemente.

— Puseram sua lealdade no lugar errado. — Arrepios subiram pelo pescoço e ela desejou desesperadamente que o mestre tivesse um corpo físico.

— Minha lealdade é sua.

Sentiu a aprovação dele em uma onda de prazer que queimou nas próprias veias.

— Argúrio tem o que você precisa agora — sussurrou a voz acetinada de Nerian. — Brutal e ardiloso, e nunca me trairá.

— E a mulher? — Quase não conseguiu perguntar, a respiração ofegante.

— Guardemos Verônica. Minha linda raposa é uma assassina difícil de ser controlada por outra fêmea, tão brutal quanto o corvo e infinitamente mais astuta.

Calla sentiu os ciúmes subir pela garganta, e um beijo invisível estalou em seus lábios. A sensação enganosamente sutil e deliciosamente cruel a fez tocar os próprios lábios, desejando mais.

— Sei que minha querida está ansiosa para brincar com fogo, mas preciso de você inteira. Traga Argúrio para servi-la e deixe Verônica para quando estiver forte suficiente para subjugá-la, ou aquela raposa cortará sua linda e delicada garganta no meio da noite só para ter o livro.

A página virou, Verônica era uma mulher alta e esguia de cabelos castanho acobreados, em uma das mãos tinha uma adaga; na outra, o livro.

— Esse grimório é um repositório quase ilimitado de conhecimento. Ainda que tenha pertencido a ela, a raposa não conseguiu desvendar um décimo do que está codificado pelo sangue de Hécate.

Enquanto Calla admirava as imagens vivas no livro, longe dali Melissa acordava ofegante. Esfregando os olhos, ela cambaleou para fora da cama e abriu o material de pintura.

Com um pedaço de carvão, começou a desenhar valas repletas de formas indistintas. Lágrimas pingavam sobre o desenho à medida que reconhecia pessoas, tão destruídas que mal pareciam humanos. Sobre o cenário preto e branco, os olhos dourados do Tigre.

— Não era assim no começo. — A fera semelhante a um imenso tigre albino tinha dito no sonho, ela se lembrava da voz baixa, meio quebrada. — Ele nos distorceu aos poucos, fez com que muitos de nós parássemos ver as crianças desse mundo como nossos iguais. As distinções superficiais das nossas raças se tornaram uma ferramenta para segregar. Quando percebemos o que ele estava nos tornando, eu não pude aceitar e por isso eu chamei por ela, não esperava que você viesse.

Melissa tentou desviar os olhos do desenho que parecia ter se formado sozinho. 

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⏰ Última atualização: Jul 03, 2022 ⏰

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A PRAIA DAS ALMAS LIVRO II - PRESUNÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora