Fraternidade

3 1 0
                                    


O que define família são as ligações invisíveis que superam os laços de sangue

Arthur esperava retornar a rotina depois do acampamento, não dar de cara com um irmão adolescente confortavelmente instalado no sofá da sala.

— Já tem três dias que eu tô sozinho nesse cubículo. — A voz e os traços eram tão semelhantes a Lafayete que Arthur recuou um passo, avaliando o rapaz dos pés à cabeça.

O garoto era loiro, a pele clara de um tom mais rosado que a pele de Arthur, os olhos mais esverdeados que os de Fernando, maxilar um pouco quadrado e cachos dourados que faziam Fernando pensar nele como um carneirinho fofo.

Jorge recuou diante do olhar gélido de Arthur. Tinha esperado dias para encontrar os irmãos mais velhos e achava que estava pronto para qualquer reação depois que o pai despreocupadamente o deixou no apartamento.

— Não tem nada na geladeira — resmungou. — E parece que essa bosta de lugar não tem um restaurante que entrega em casa. A propósito, caso não me reconheçam, sou Jorge, vou morar aqui e...

— O pai te deixou aqui sozinho faz três dias? — Arthur ainda observava o garoto, que se mexeu desconfortável.

Fernando e Arthur sabiam da existência de Jorge. Não o conheciam, mas sabiam que era filho de uma mulher bem mais jovem que as mães deles que, ao descobrir o caráter de Lafayete, pegou a melhor pensão que pôde e se mudou para a França.

Nas poucas vezes que pensaram no irmão mais novo, imaginavam que estivesse livre da desconhecida força gravitacional que prendia algumas pessoas naquela cidade.

Estavam errados.

— Não é como se eu fosse uma criança que precisa de babá.

— É bem a cara dele! — Arthur suspirou se acomodando na poltrona à frente. — Sua mãe sabe que ele te jogou aqui e foi embora?

Fernando lançou um olhar de repreensão para Arthur e caminhou até o garoto, que encolheu o corpo na defensiva. Fernando era alto e tinha a pele em um tom mais dourado que nas fotos, queimado de sol, cabelos castanhos volumosos e ondulados.

— Antes de criticar o velho, vamos dar boas-vindas ao nosso irmão. — Fernando esticou a mão para o caçula e quando ele retribuiu o gesto, puxou Jorge para si.

Arthur assistiu o choque de Jorge quando Fernando o acolheu em um abraço de urso. Era fácil para os dois irmãos mais velhos imaginarem que o pai queria se ver livre das responsabilidades tão rápido quanto possível, não se importando em invadir o espaço ou a vida de outras pessoas sem ao menos consultá-las.

Jorge se soltou e olhou para Arthur, comparando a presença ensolarada de Fernando com os cabelos negros e olhos profundos do outro.

— Não vai dar boas vindas ao nosso caçula? — reclamou Fernando.

— Depois de quase esmagar as costelas dele, duvido que ele precise de mais.

— Então é isso. Tá de boa eu ficar? — Arthur podia ver no garoto a inquietação e o medo da rejeição. Os dois irmãos se entreolharam e Fernando começou a rir.

— Você é praticamente a cópia do pai — respondeu Arthur. — Eu diria que é mais filho dele que nós dois. Além do mais — apontou para Fernando —, aquele ali nunca deixaria um filhote na rua.

— Não liga pra Art, ele é um velho rabugento.

Arthur não tinha certeza se era uma boa ideia, mas apesar das preocupações, não se via mandando o garoto de volta. Ambos já estiveram em um lugar bem semelhante ao que o caçula ocupava: não cabendo direito nas vidas das mães jovens e sem nenhum apoio afetivo do pai.

— Claro que ainda vamos falar com a sua mãe — esclareceu Arthur. — Duvido muito que aquele irresponsável tenha tido a dignidade de avisar sua mãe que te mandou pra cá.

— Ela precisa saber que você está bem e nós precisamos saber o que ela vai querer fazer daqui para frente. — Fernando tocou o ombro do mais jovem de modo conciliador. — O pai não pode decidir sua vida quando foi sua mãe quem te criou até agora. Se ela estiver de acordo, essa também é sua casa.

— Então essa de boas-vindas é só migué, já estão pensando em me despachar!

— Ninguém tá te mandando embora. — Jorge não tinha reparado que Fernando colocara o avental logo depois de jogar a mochila ao lado do sofá. Ele remexia na cozinha, tirando do armário alguns potes de vidro cheios de ervas.

— Valeriana — disse Arthur. — Tampa azul.

— Éramos mais novos que você quando fomos morar nos dormitórios. — Fernando falava enquanto preparava o chá. — Nossas mães estavam sempre preocupadas. Embora tenha sido uma escolha nossa, estávamos longe de estarmos bem com aquilo. Por um tempo fomos péssimos filhos, ignorando que embora não fossem perfeitas, nossas mães faziam o melhor que podiam.

Quando Fernando serviu, notou que as mãos de Jorge tremiam de ansiedade e nervosismo. — Valeriana foi uma boa escolha —, pensou olhando para Arthur.

— Eu estou apenas supondo, mas você deve ter se desentendido com sua mãe e dito que estaria melhor morando com o pai. Sua mãe deve ter pensado que talvez fosse bom pra vocês dois passar um tempo juntos e se conhecerem. — Arthur observava Jorge se mexer desconfortável, fazendo careta para o chá.

— Vocês não têm nada melhor para oferecer? Tipo um refrigerante?

— Acertei, pelo visto. — Arthur olhou para a xícara, e Jorge se viu pressionado a dar um gole. O gosto era estranho para quem não estava acostumado, mas não era ruim. O calor desceu pela garganta, espalhando uma sensação confortável.

Arthur tinha consciência de que ele e Fernando tiveram a sorte de encontrar uma figura paterna que era o total oposto de Lafayete e que lhes mostrou caminhos diferentes e melhores que a tristeza, a mágoa e a raiva. Sabia, por experiência, o quanto o abandono podia alimentar as tendências mais autodestrutivas.

— Não é bom ficar brigado com sua mãe. Uma vez que você sai de casa a distância entre vocês só vai aumentar. — Fernando afagou a cabeça de Jorge como faria com um filhote de cachorro.

— Eu não quero voltar — protestou Jorge sentindo as pálpebras pesarem.

— Você nunca foi muito bom em proporções — zombou Arthur, pegando a xícara vazia das mãos do irmão adormecido.

— Talvez esteja acostumado a uma proporção exagerada por sua causa. Ser seu irmão nem sempre é bom para os nervos — retrucou Fernando.

— Acha mesmo uma boa ideia deixar essa criança ficar?

— Ah, comparados aos nossos, que problemas um garoto de dezessete anos poderia causar?

— Acredito que a pergunta correta seria: podemos manter um garoto adolescente fora dos nossos problemas? — respondeu Arthur, e Fernando riu sem muito humor.

A PRAIA DAS ALMAS LIVRO II - PRESUNÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora