01. E foi assim que começou, com muita água e pão de queijo

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Não era a primeira vez que o meu sonho se repetia, e duvidava muito que seria a última. Eles se modificavam um pouco, mas o que permanecia era a quantidade de água que aparecia. A noite passada sonhei que estava andando na praia, vinha uma onda gigante e me pegava. Quando ia à psiquiatra, ela me falava que água significava sentimentos, então ter sido engolido pelas minhas emoções não deveria ser um bom presságio.

Assim que me levantei, tentei me situar. Os dias permaneciam iguais e às vezes tinha dificuldade de saber em qual deles estava. Minha vida tornou-se bem monótona — ou sempre foi, não sabia dizer ao certo. A rotina era acordar cedo, ir à academia, quando dava tempo, e depois ao escritório, onde estava preso até a noite, com sorte saía às 20:00, mas na maioria das vezes, bem mais tarde.

A pior coisa do mundo era ser adulto.

Lembrava de que quando era criança, tinha outros sonhos e me imaginava sendo um adulto com um futuro completamente diferente do que vivia. Aos 5 anos de idade comecei a cozinhar com a minha vó e quando vi a cena do Sebastião, o caranguejo da Ariel, correndo do cozinheiro, pensei que deveria ser interessante parar de preparar gelatinas e tentar algo um pouco mais difícil de fazer.

Meus pais, entretanto, falavam que isso podia ser só um hobby e mais nada, mesmo quando era criança e juntava as panelas caras da minha mãe. Meu pai gostava de me explicar que emprego de verdade era engenheiro, médico, advogado ou arquiteto. E então tive que escolher dentro dessas opções limitadas, trabalhava na área jurídica, mas odiava todos os dias.

Gostar ou não do serviço não estava na lista de prioridades do meu pai, ganhar dinheiro e estar no topo da minha área estava, então apenas continuava os meus dias iguais, sem pensar muito na realidade alternativa que nunca teria.

O problema surgiu alguns anos atrás quando tive depressão, chorava todos os dias antes e depois do serviço. Toda água que perdia durante o dia voltava para mim nos meus sonhos. Foi nesse período que fui a psiquiatra, mas acabei parando. Ela queria que tivéssemos sessões duas vezes por semana por pelo menos 6 meses. E eu não tinha tempo.

Então, assim que me deu um remédio, na segunda semana, nunca mais apareci. Talvez o medicamento estivesse perdendo o efeito porque os sonhos voltaram. Que tipo de sentimento eu podia ter se não via ou falava com ninguém que não fosse do escritório?

Além das pessoas do trabalho, também passava o meu tempo livre com minha namorada. Nós nos conhecemos na época da faculdade e todos os meus colegas falavam que deveria ir atrás dela, chamá-la para sair e pedi-la em namoro. Eu não estava nem um pouco interessado, pois tinha planos: tirar ótimas notas, achar estágio no melhor escritório de São Paulo e passar na OAB antes de terminar a faculdade.

Marisa, minha namorada, foi quem puxou assunto comigo, me beijou pela primeira vez na entrada da faculdade e falou que deveríamos namorar no meio da aula de prática civil. E eu aceitei, como fazia com tudo.

Marisa não quis advogar e preferiu a vida de concurseira, por isso nós só nos víamos nos finais de semana. Ela sempre entendeu o tanto que o Direito e a minha carreira eram importantes para mim. Nos domingos costumávamos ou dar uma volta na Paulista, quando, às vezes, ela encontrava com alguns de seus amigos, ou almoçávamos na casa de nossos pais.

São Paulo era o centro cultural do país, sempre tendo várias coisas interessantes para ver e fazer, não precisávamos ir para além da Paulista para apreciar um bom restaurante, livrarias ou eventos culturais. A cidade também tinha as melhores oportunidades de emprego, na grande maioria das áreas.

Mas a verdade era que eu odiava tudo isso!

Odiava a cidade que sempre estava em movimento, com barulho, gente demais nas calçadas, muitos prédios e tanta tristeza. Como que um lugar conhecido como selva de pedra poderia ser bom?

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