Quando Johnny saiu do banheiro, parecia um animal atento. Os olhos muito abertos, mirando à volta, e a expressão de... medo.
Ele se dera conta de algo, enquanto se olhava no espelho.
Conquanto tentasse clarear aquele mistério, sentia que tudo só ficava mais embaçado.
Ali estava ele, no corredor de sua casa. Atrás, ficava o banheiro. Dos lados esquerdo e direito, os quartos dele e do pai. À frente, a sala. Mais à frente, a cozinha.
Certo.
Mas, aquela não era exatamente a casa de Johnny. Havia muito dela, mas o que estava diferente é que o arrepiava.
Além das cores, diferentes, onde estava a Alexa que comprara para o pai, quando ele parara finalmente de enxergar, mas a vontade de ler não passara? Com o dispositivo, o velho afastava a solidão, ouvindo áudio-livros e músicas antigas.
"Ah, saudade, diz pra ela aparecer..."
E onde estava a grande TV com que o próprio Johnny se presenteara para assistir aos seus desenhos favoritos, à noite, quando chegava em casa, após o trabalho?
Mesmo com 22 anos, Johnny ainda gostava de desenhos animados.
22 anos.
22...
...anos.
O rosto que o mirara do espelho tinha 12.
E ainda havia uma outra ausência, mais importante que a TV, e seguramente mais significativa que a bola mágica da Amazon, mas Johnny ainda não sabia o que era.
Foi então que, de longe, muito longe, ele ouviu uma voz que chamava por um nome do qual ele nem se lembrava mais, um nome que havia ficado perdido em algum lugar do passado.
- Tico! Vem tomar café, filho!
A voz, entretanto, ele reconhecera. Como poderia esquecê-la? Mesmo que se passassem cem anos, se estivesse vivo, ou perto disso, ainda a reconheceria.
Ali estava ela, D. Laura, sua mãe, pondo o café na caneca, com o Jake de Hora de Aventura piscando um olho para ele.
A caneca, que ele adorava, tinha uma grande e aparente rachadura, resultado de uma queda quase fatal, que fizera Johnny chorar. Hora de Aventura fora amor à primeira vista, e Jake, o irmão que Johnny nunca tivera.
Tudo o mais estava ali. O pão parecia ainda quente, na sacola. A manteiga, amarelinha, na manteigueira de louça. Tudo simples, tudo bom.
Como se ainda estivesse dormindo, ele sentou. Estava, na verdade, hipnotizado. Bebeu o café quente e doce, como era o de D. Laura. O líquido inundou seu corpo de nostalgia. A mãe falava que tinha ido cedo na feira, e de fato havia sacolas cheias de verduras, queijos e outras iguarias, logo ali, depositadas no chão da cozinha.
- Seu pai viajou para fazer uma entrega, mas volta amanhã à tarde. Coitado... está tão cansado...
Johnny ouvia a mãe e bebia mais daquele café com gosto de saudade. Sentia-se anestesiado. Será que era assim morrer?
Não. A palavra estava certa, mas o contexto, errado. Não era ele o morto, ali.
Johnny olhou para a mãe e depois para o espaço vazio no móvel do corredor e finalmente entendeu o que faltava. Quantas vezes não vira o pai, já cego, procurando por aquilo?
Com que cuidado tocava aquele frágil objeto, quase acariciando o pequeno recipiente que não guardava outra coisa que as cinzas da mulher, morta por um câncer fulminante quando Tico não completara ainda 13 anos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Aventura de Johnny
FantasyJohnny tem 22 anos e está começando a vida adulta, com seus novos direitos e deveres. Mas algo inesperado atravessa a vida dele. E agora o passado ressurge de maneira intensa e Johnny terá que lidar com dores antigas.