Agapanthus

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No horizonte azul pontilhado de pequenas nuvens, desce do céu uma figura esguia, batendo suas asas para regular sua trajetória para o solo. Agapanthus fora chamado até o Conselho Místico para realizar uma missão importante. Ele raramente toca a terra com seus delicados pés, mas seria grosseria entrar no Conselho voando. O rapaz pousa logo a frente do prédio, se curva para os guardas que protegiam a entrada e vai à procura do responsável pela missão. As paredes do lugar, feitas de uma mistura de barro e argila, trazia uma sensação desagradável a ele. Era rústico demais. Quem havia construído aquele prédio não havia se preocupado com a estética horrível do barro. Onde ele mora, as casas são perfeitamente alinhadas, com as entradas decoradas por pilastras de mármore salpicadas de pequenas flores no entorno. É uma visão de tirar o folego, elegante e maravilhosa, assim como toda obra de Deus. Mas Agapanthus não esperava algo parecido de uma construção feita pela terra.

Depois de percorrer por alguns minutos o longo corredor principal, o rapaz vira em uma via secundária e caminha até o final. Há uma grande sala fechada adiante, com uma placa pendurada na parede com dizeres "Sala de Gestão de Entidades" escrita nela. Ele bate suavemente na porta e a desliza para entrar no cômodo:

—Que bom que chegou cedo. Pode sentar em qualquer lugar. Vou explicar o que precisa fazer.

Um senhor, já de idade avançada, sentava no meio da sala. O chão do lugar não era de madeira como o piso do corredor. Na verdade, não havia revestimento, somente solo. A sala, mesmo fechada por fora, passa a sensação de estar ao ar livre. À direita, um córrego deságua em um buraco contornado por pedras. O jovem se pergunta de onde vem a nascente do riacho e para onde vai a água dele, mas não questiona sobre com o senhor. Algumas árvores de médio porte balançam alegremente com o vento. O idoso está logo ao lado de uma das pontas do rio, curvado sobre uma pilha de papéis perigosamente perto de um lamaçal. O manto que veste o senhor é de um vermelho tão intenso que incomoda os olhos do rapaz. Agapanthus se posta diante do homem, ainda de pé. Ele não arriscaria sujar suas roupas com a lama do riacho.

O senhor levanta a cabeça para encará-lo. Agapanthus percebe que o homem não estava curvado por causa dos papéis. Na verdade, ele tinha as costas vergadas para frente, resultado de anos de má postura.. Ele faz um gesto com a mão para que o garoto se sentasse:

—Por favor, fica mais fácil para conversar.

Agapanthus se ajoelha no chão. O senhor então ergue um grosso livro, encapado com um couro tratado, tingido de preto. Ele abre o livro na primeira página, em branco, e entrega uma caneta para o rapaz:

—Bom rapaz. Eu sou o Exu do Lodo, responsável pelo Livro de Registro Místicos. Nós do Conselho Místico decidimos que é preciso realizar um novo registro de todas as entidades e seres místicos da nova era. Vamos contabilizar os novos seres que surgiram. Você ficará encarregado de buscar a assinatura das entidades para registro. Pode começar com a sua própria assinatura.

—O senhor não teria um pincel e uma pedra tinteiro?

—Basta girar a caneta entre os dedos. Ela se ajusta automaticamente ao escritor.

Agapanthus faz o que o homem pediu. Quando a caneta parou de girar, ela havia se tornado um pincel, já com tinta em sua ponta. O senhor desliza o livro para ele. O rapaz rubrica sua assinatura, com letras cursivas.

Quando ia finalizar o último traço, a porta da sala bate com força atrás dele. Sua mão raspa o papel onde não deveria e o final da grafia fica com uma mancha de tinta. Agapanthus pressiona os lábios, insatisfeito. Ele se vira para encarar quem havia batido a porta e causado sua distração. Entra na sala um demônio. De imediato, o rapaz se levanta e se posta contra o invasor:

—O que quer aqui, demônio? Volte para as sombras, onde é teu lugar! —Brandou Agapanthus.

O invasor ri como resposta e se aproxima do homem, sentando preguiçosamente à esquerda de Cadere. O rapaz desenha um arco com a mão e conjura sua espada sagrada, depois a aponta para o pescoço do demônio:

—Saia imediatamente deste solo sagrado se não queres que tua ingrata vida acabe hoje.

—Achava que esse pessoal egocêntrico não pisava na terra. O que aconteceu, querido? Mais um expulso do Céu? —Respondeu.

—Não fui expulso e não tenho obrigação de revelar a tu meus objetivos aqui.

—Então eu não tenho obrigação de sair.

O Exu do Lodo pigarreia para chamar a atenção dos dois e pede que Agapanthus guarde a arma. O jovem suspira impaciente, mas guarda a espada:

—Vocês vão trabalhar juntos para coletar as assinaturas. —Começa o homem. Os olhos de Cadere se arregalam.

—Senhor Exu, por Deus, nunca vou trabalhar com um demônio. O senhor não vê que ele nem tem o pudor de se vestir apropriadamente?

—Não é culpa minha se você não consegue se segurar.

O senhor se levanta e entrega o livro para o demônio assinar. Ele rabisca algumas linhas na folha e o entrega para Agapanthus:

—Há lugares onde o mal não é bem-vindo, então não se pode o mandar sozinho. Também há lugares onde o bem se corrompe fácil e compromete o andamento da missão. Vocês têm que seguir juntos. Além disso, Yao Shang sabe um selo de reconhecimento que vai guiá-los para seres místicos nas redondezas, então não precisarão perder tempo procurando cada entidade. Não se preocupe, Shang já esteve envolvido em vários outros projetos do Conselho. Nós sabemos que ele não vai representar nenhuma ameaça a sua integridade.

Cadere range os dentes, inconformado com a situação. Ele pega o livro das mãos de Shang, que mostrava a língua em deboche. O senhor apanha um bocado de lama e entrega para o demônio. Quando a lama chega nos dedos do rapaz, ela magicamente se torna uma bolsa porta moeda recheada. O idoso sussurra para Shang comprar uma calça. O demônio concorda, meio relutante.

Já fora das dependências, o Exu de Lodo deseja boa sorte aos viajantes. Agapanthus abre as asas e voa na frente enquanto Shang veste a calça que acaba de comprar. Ele acende o selo de reconhecimento e corre atrás de Cadere.

Voando a alguns metros de distância do chão, os dois seguem caminho pela planície aberta. O selo é grafado por vários traços que parecem desenhos. Agapanthus nunca havia visto nenhuma palavra com aqueles traços antes, mas pareciam significar algo para o demônio. Igualmente, o rapaz nunca havia visto um demônio parecido com aquele. Sua pele é preta e contrasta com o cabelo alvo completamente bagunçado. Dois chifres despontam timidamente logo acima da testa, também brancos. Os olhos são pequenos e têm duas íris de um preto profundo. Na boca, caninos salientes ficam a mostra mesmo com os lábios colados. O que é mais esquisito, sem dúvidas, são as unhas tingidas de púrpura. Shang percebe que Cadere está o observando e abre um sorriso provocador:

—O que foi, gracinha?

—Que distrito eres tu, demônio? Não o reconheço da linhagem principal.

—Eu sou um succubus chinês. Talvez você não reconheça minha aparência porque nós succubus mudamos nossa formas referente ao estilo que os humanos seguem na época.

—Eu sou um anjo latino. Depois que a língua morreu, nós nos mudamos para o Céu Primitivo.

—E todo mundo lá é tão bonito que nem você?

Agapanthus entra no meio do caminho do Shang. O limite de paciência do rapaz se esgotara. Ele cruza os braços frente ao corpo. Do outro lado, Shang cruza os braços atrás da cabeça:

—O Exu do Lodo falou que tu não costuma cortejar quando estas em missão. Por que és assim comigo?

—Gostei de você.

—Um ser divino como eu nunca cairia em tentação contigo, demônio.

Shang desliza a língua pra fora. Dessa vez, a língua humana que ele adora exibir deu lugar a uma língua longa e bifurcada. Cadere bate as asas com força e alça aos céus, longe do demônio. O rapaz seguiria a viagem o mais longe possível para não ouvir tamanhos absurdos. Ele segura o Livro de Registros Místicos com força contra o peito e ora para que aquela penitência termine logo.

Plumas a cairOnde histórias criam vida. Descubra agora