Capítulo Dois

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A noite era turva e uma camada de neblina pairava sobre os túmulos. Depois da mureta que cercava o cemitério, era possível ver a silhueta de uma janela, revelada por uma luz amanteigada do lado de dentro. Tratava-se de uma vela no quarto da senhora.

Em pé, olhando para a parede suja, onde havia um crucifixo pendurado, sussurrava freneticamente o que em sua mente era uma oração. Já estava naquela posição há horas. Às vezes cochilava e o corpo pendia para frente, mas acordava e continuava a rezar.

O pequeno rapaz acordou e esfregou os olhos. Moveu-se, notando a pele nas costas repuxar. Como se houvesse uma cola espessa na região queimada. Sentou-se na cama e se deu conta de que já era noite. Ao se levantar, sentiu pontadas na pele. Decidiu que deveria contar à mãe o que acontecera para que ela o levasse a um médico. Porém, assim que abriu a porta, escutou gritos. Seus pais brigavam, o que parecia ter virado uma rotina nas últimas semanas. Fechou a porta novamente, desanimado. Queria chorar. Não sentia dor, mas a crosta amarelada que se formava em suas costas era feia e fazia seu coração disparar sempre que se olhava no espelho. Arrependeu-se de não ter escutado todas as vezes que sua mãe disse para que não se misturasse com aqueles garotos e importunar aquela senhora. Sem o que fazer, apagou a luz e voltou para a cama. Ficou chorando em silêncio até dormir.

Teve um sonho perturbador. Afogava-se em uma água escura. Tentava se salvar, mas não encontrava a superfície. Acordou, completamente molhado de suor. Ofegou, imóvel na cama por um tempo. O lençol estava encharcado. Abriu a janela e deixou escapar um grunhido de alívio quando o vento fresco da madrugada tocou seu rosto.

Seu corpo estava lânguido e os braços doíam. Levou as mãos às costas e sua pele ardeu no contato com os dedos. Com a sensação de que estava em chamas, abriu a porta e foi para o quarto dos seus pais.

— Mãe — resmungou.

Mas a cama estava vazia.

— Pai? — chamou assim que acendeu a luz para confirmar.

Seu coração batia forte no peito magro à medida que o medo crescia. Percorreu a casa, em busca de seus pais. Quando percebeu que ninguém apareceria, voltou para o quarto e esperou que as dores fossem embora.

O céu começava a clarear. A velha olhou pela janela quebrada da cozinha enquanto passava o café em um coador de pano fedorento. Um grilo cantava em algum canto da mata. Escutava a correnteza do rio depois das árvores. Tomou o café em uma de suas xícaras de alumínio amassado. Pegou seu xale de crochê repleto de buracos feitos por ratos e o jogou sobre os ombros. Saiu de casa e foi em direção a um portão de ferro, que dava acesso à igreja.

A portinhola rangeu e ela entrou. Caminhou sobre o gramado, contornando a igreja e adentrou o cemitério. Andou entre as lápides até parar em frente a uma bem menor que as demais. Tirou uma caixa de fósforo do bolso, riscou o palito e levou a chama fraca ao pavio queimado de uma vela colada sobre o mármore. A pequena chama tremeluzia e lutava para se manter viva no meio da neblina. A velha juntou as mãos debaixo do xale e permaneceu parada, rezando.

Mesmo a noite indo embora, o dia era cinza e inóspito. O garoto saiu da cama e foi à cozinha. Quase sentiu o cheiro do doce de arroz que sua mãe costumava fazer. Estava com fome, mas quando pensou em abrir a geladeira para comer algo, escutou um choro. Seguiu o som do lamento e chegou ao quarto dos seus pais. Abriu a porta e viu sua mãe deitada na cama. Sentiu-se aliviado por não estar sozinho em casa. Subiu na cama e abraçou a mãe. Ela continuou na mesma posição, chorando como se não tivesse notado sua presença. Achou que não tinha o direito de reclamar por estar faminto, então saiu do quarto e fechou a porta. Procurou o pai, mas não o encontrou. Perdeu a fome e acabou voltando para o seu quarto. Chorou até a cabeça doer, mas em silêncio para que a mãe não o ouvisse e se entristecesse ainda mais. Fechou os olhos molhados e recostou a cabeça sobre o travesseiro.

Sua respiração foi se tornando pesada; precisava fazer cada vez mais esforço para inspirar o ar. Até que parou de respirar. Percebeu o corpo flutuando em um lugar gelado. Entrou em desespero quando notou que afundava. Abriu os olhos e moveu os braços desordenadamente. Com esforço chegou à superfície. Tossindo, usou as mãos para empurrar a água até alcançar a margem. Saiu da água e caiu de joelhos na terra. Estava no rio e chovia severamente. Largou o corpo no chão e olhou para o céu, esperando o ar retornar.

Reprimiu a vontade de cair no choro sozinho no meio da mata. Ergueu-se e saiu correndo. Conhecia o caminho e sabia qual trilha seguir. O percurso mais curto para sua casa passava por onde morava a Senhora do Cemitério. Embora escuro, assim que deixou a mata, avistou os fundos da casa dela. Suas pernas finas congelaram por um instante, mas um trovão repentino o fez sair em disparada. Corria colocando extrema força nos pés e mirava o estreito atalho que contornava o casebre que era ainda mais sinistro naquela tempestade.

A poucos passos de cruzar a lateral da casa e sair na rua de pedras da igreja, pisou em falso numa poça e se esborrachou no chão molhado. Gemeu, ofegante, notando que o corpo estava ensopado de barro. Ao se virar para continuar, deu de cara com a senhora. Tentou se esquivar, mas ela o agarrou pelo braço e disse com a voz esganiçada:

— Ocê tem que ir embora. Acorda desse pesadelo!

O garoto berrou. Sua voz ecoou pelas ruelas daquele pequeno distrito. Seu braço escorregou dos dedos ossudos e enrugados da velha; voltou a correr. Ao chegar em casa, seu choro se misturava com o cansaço. Sabia que não havia ninguém para cuidar dele. Seu pai nunca mais aparecera e sua mãe estava sempre chorando nas raras vezes que a via.

E assim foi sendo todas as noites. Acordava dentro do rio e voltava correndo para casa, que a cada dia se tornava mais soturna. Nunca havia ninguém nas ruas e as portas e janelas das casas estavam sempre fechadas. Era como se a cidade estivesse sempre no limiar da noite. 

O limiar da noiteWhere stories live. Discover now