01. Solstício de Inverno

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— O solstício de inverno é em quatro dias! Será que a primeira neve demorará muito a cair?

— Não sei, mas estou empolgado é com o festival. Começa hoje! Já cheguei ao ponto de sonhar com os doces.

Duas pessoas passaram em frente à ferraria, conversando sobre a troca de estação cada vez mais próxima. Suas vozes foram abafadas pela martelada que desferi contra o metal incandescente, fortalecendo o formato de uma espada.

Soprei alguns fios castanhos para fora do rosto, e tentei não pensar o que a nova estação significava. Não por me imaginar dançando ou degustando dos doces, mas pela antecipação de algo maior.

Um ano de espera chegava ao fim.

— Oriane, vai queimar seu cabelo de novo.

Um timbre familiar me fez parar, o martelo a meio caminho da espada. Olhei para cima, e me deparei com Galen, seus traços firmados em preocupação na pele escura.

Meu sorriso veio espontâneo. Sacudi a cabeça para seu cuidado constante.

— Meu cabelo está preso, Galen.

De fato estava, mas desleixado em comparação ao rio longo de tranças de Galen, contidas por uma presilha maior, garantindo que cada fio de cabelo ficasse fora de seu rosto. Ele estreitou os olhos, contendo divertimento.

— Poderia esperar ali?

Meu amigo apontou a cadeira diante da mesa de trabalho, e pediu licença para segurar o martelo. Quando terminado, Galen veio até mim e, com os dedos ágeis e gentis, começou a trançar meu cabelo.

— Isso é medo de que me queime?

De novo, ressalto. Deveria ter mais cuidado.

— Você mesmo diz: sempre lidei bem com o fogo, por isso me tornei sua ajudante. — sorri ao falar. Galen estalou a língua.

Tínhamos uma certa rotina, e seus puxões de orelha eram hábito. Desde que cheguei à cidade, sem rumo e sem história para contar, Galen me acolheu e passei a ajudá-lo na ferraria, para compensar a estadia.

Ele era uma boa alma. Tinha sorte de tê-lo conhecido, e de ser um dos alvos de sua constante preocupação com bem estar alheio.

— Pronto. — logo suas mãos distanciaram da minha cabeça, senti a ausência do toque caloroso, que deixou para trás uma bela trança rente à raiz — Agora não perde cabelo.

Não contive mais a risada e, ao me virar, vi Galen também sorrindo. Algo em suas íris castanhas reluziu quando nossos olhares se cruzaram.

— Obrigada, Sr.Precavido.

— Sei que não adianta reforçar para ter cuidado, então digo que pode contar comigo para prender melhor seu cabelo quando precisar.

Sua fala foi como um lembrete, e mordi minha bochecha. Talvez não haja uma próxima vez, o pensamento pesaroso ecoou e tive de virar o rosto.

— O obrigada não é apenas pela trança. — um gosto amargo invadiu minha boca. É por tudo, gostaria de ter dito melhor.

Galen colocou a mão em meu ombro, um incentivo para encará-lo. Havia um vinco em sua testa, um pergunta na forma dos seus lábios.

— Que houve?

Engoli em seco. Eu era tão transparente assim?

— Vou ao mercado  — anunciei, aumentando o tom de voz — Deseja algo?

— Oriane. — meu nome foi dito com carinho, um pedido. Fale comigo, os olhos dele diziam. — Aconteceu algo?

Era impossível não ceder. Ofereci-lhe um sorriso nostálgico.

— Fará um ano desde que cheguei à cidade. — as sobracelhas de Galen se arquearam, e a percepção pareceu se abater sobre ele — Só fiquei um pouco reflexiva, e queria ter dito a você como sou grata.

Meu amigo ficou sem jeito, sua mão soltou de meu ombro e notei como procurou um novo alvo para sua atenção. Porém, seus lábios se ergueram sem ele notar.

— Não precisa agradecer. — de repente, seus olhos estavam nos meus de novo — Sou feliz de tê-la conhecido.

Lágrimas pinicaram meus cílios. Eu não deveria sofrer em antecipação. Por isso, sacudi a cabeça e sorri o mais aberto que consegui.

— Eu não menti sobre o mercado. Precisa de alguma coisa?

— Não se incomode. Também vou precisar sair à tarde, e como a maioria dos serviços está parada pela chegada do festival, não precisa manter a ferraria aberta.

Alguma ideia parecia ter se alojado na mente de Galen, porque sua atitude assumiu um jeito sapeca. Quis ser eu a pressioná-lo por uma explicação, apenas para fazer revanche, mas me contentei em ter mais tempo para me preparar.

Era meu último dia na cidade, e não ter de trabalhar ajudaria.

Abracei Galen de lado e desejei boa sorte em seus compromissos, quaisquer que fossem. Meu coração começava a se contorcer, roubando um pouco do meu fôlego e minha mente se inundava.

De piadas internas, choros e risos que vivi no último ano. Esses momentos foram capazes de suavizar meus dentes cerrados, a vontade incessante de correr atrás do que me foi tirado.

Lembrei-me do que era ser humana. E devia isso a Galen, pelo descanso de minha alma.

Já descansada, era hora de agir. Então, direcionei minhas forças a ir ao mercado e comprar o que seria essencial para uma viagem.

— Deveríamos comprar este ou esse amuleto para dar forças à Firaine?

Uma moça apontou de uma tenda, dois amuletos redondos nas mãos, em tons de vermelho. O nome me chamou atenção, e arrepiei.

— A deusa do fogo vai estar vulnerável, deveríamos levar os dois para colocar em seu templo. — o filho a respondeu.

Convencida, a mulher tirou da bolsa de moedas dois exemplares de prata. Soltei o ar com certa dificuldade, ajeitando as sacolas com o que já tinha comprado e voltei a andar. Os arredores não ajudavam com minha ansiedade.

O festival de inverno durava quatro dias seguidos, em que quitutes, sopas e peles eram vendidos. Peças eram apresentadas em praças ou tavernas, e o povo dava boas vindas à estação.

No entanto, sabia-se que era o momento em que a deusa do fogo, Firaine, estava mais fraca. Quando o festival acabava, todos saíam em uma procissão de dois dias até seu templo, para lhe ofertar amuletos e preces que a fortalecessem, para que ela protegesse a todos nos dias mais frios.

Lembrar a história me impulsionou a voltar para a ferraria. Galen não estava, e consegui manter meu foco e organizar meus suprimentos, certificando-me de que não esquecia de nada. Por último, escolhi uma das espadas do mostruário, uma que eu ajudei a forjar, visando o dia em que precisaria dela.

Peguei a quantia referente à espada e deixei em cima da mesa. Racionalmente, isso era tudo que deveria fazer. Emocionalmente, ainda me questionava como seria capaz de dar adeus àquele lugar.

Na terceira tentativa, consegui escrever um breve bilhete sem manchá-lo com algumas lágrimas. Eu acreditava que Galen nunca seria capaz de entender como havia me ajudado, não por inteiro.

Quando o sol começou a se esgueirar para as entranhas do horizonte, decidi partir. Cada passo para longe da ferraria era pesado, distanciando-me do lugar que aprendi a reconhecer como um lar.

Até que entrei nas trilhas da floresta e a única opção restante era olhar para frente. E deixar tudo para trás. 

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