O primeiro objetivo de Lamento era reunir todos os seus compromissos e ter certeza de que compareceria a eles na hora, minuto e segundo certo, afinal nem mesmo ele sabia qual deles seria um simples assinar de documentos e qual seria um importante teste para medir suas aptidões que duraria dias. Depois de organizados os compromissos, o objetivo se tornaria reunir todos os papéis em ordem de quando eles deveriam ser entregues ou processados ou lidos ou obedecidos ou rasgados ou assinados ou guardados. E por último o objetivo seria cumprir sua nova escala de horários e agir de acordo com, como, quando e de que forma os papéis deveriam ser tratados.
Assim fez Lamento, e ao longo de um tempo maior do que deveria ter sido, Lamento colidiu com seu primeiro problema de muitos que viriam.
- Meu lorde, o senhor não carimbou a folha no local certo... Não sei como continuaremos agora! Todo o processo está arruinado!
O escriba segurava nas mãos uma das milhares de máquinas que checam se o estado dos documentos está como deveria.- Algum problema precisa ter acontecido, isso é um terrível engano. Tenho certeza que assinei no local correto. Preste atenção, duzentas páginas depois da primeira vez que meu nome aparece no documento, após dois parágrafos sem citações e de caneta cor preto-lunar, ultra-nano-fina, feita pra assinaturas atemporais na fonte oficial do sétimo imperador.
- Mas qual o local que o senhor assinou? Foi na casa de um parente próximo que pudesse comprovar que não estaria falsificando a assinatura? Como indicado nos pôsteres da sala de arquivos do décimo sexto batalhão anti-violência?
- Entendo agora... não lembro de ter lido isso antes, mas o erro é meu, em não conhecer tal batalhão que pertencia ao papai...
- Talvez eu possa ajudar com isso - uma voz ríspida e dolorida, que Lamento não reconhecia, vindo de outro escriba, chamado Rebelião - não teria jeito de burlar esse problema caso eu não tivesse achado uma brecha. Deixe me ver...
Rebelião analisava os papéis com a ajuda de um neurovisor com a configuração feita à mão por ele, procurando algo que ele sabia que iria encontrar, e por fim pegou um papel na mão, mostrando para os Lamento.
- Aqui fala que você assinou o papel no palácio, e se eu não estou enganado, parentes seus moram com você, não?
- Creio que essa é uma desculpa que pode ser utilizada senhor - disse o escriba sem nome.
Lamento pareceu ter medo de se quer pegar o documento na mão para ver se o local de assinatura era realmente no palácio. Seu pai muitas vezes dizia que não se podia confiar em nenhum verme sem importância, e o único motivo de tal vermes existirem era pra tentar derrubar aqueles que realmente importavam. Esse é um dos motivos que fazem com que trabalhos baixos, de vermes desimportantes, tivessem requisitos tão brutais e exagerados, como por exemplo os escribas, que não possuíam olhos, para que não pudessem ler documentos importantes e ganhar acesso à informação poderosa.
- Lorde Lamento, posso garantir que não estará burlando nada, e muito pelo contrário, estará obedecendo as ordens do documento. Não seria errado dizer que o palácio não é o lar de seus parentes se seus parentes moram no mesmo? Pois bem, é obrigação sua com a corte falar a verdade, que você assinou os documentos na casa de seu parente.
- Sendo assim, que assim seja. Envie os documentos. - disse Lamento com receio, que podia ser ouvido na sua voz.
E claro que esse não seria o último problema, já que Lamento não era atencioso como um barão seria. Na verdade outros dezesseis problemas aconteceram ao longo de todo o processo, e todas as vezes que aconteciam, Revolta conseguia ajudar Lamento a entregá-los mesmo assim. Mas Lamento sabia que estava fazendo algo errado. Se tantos problemas aconteciam, como podia Lamento ser a pessoa certa a liderar? Mas de novo e de novo Lamento procurava Revolta, e o mesmo reafirmava que erros assim sempre acontecem, principalmente ao testar um novo possível barão.
Após cada documento entregue e prazo cumprido, Lamento ficava mais e mais cansado, e cada vez mais se perguntava sobre seu lugar na corporação da família. As coisas seriam mais fáceis se apenas aproveitasse da fortuna de seu pai enquanto os já treinados e importantes barões da Corte cuidavam da corporação. O problema é que Lamento não era tão importante quanto gostaria de ser, ou quanto seu pai gostaria que ele fosse. Lamento nem sequer podia comer na mesma mesa que seu pai comia quando o mesmo estava vivo, e sequer podia entrar em todos os lugares do palácio, como o escritório de seu falecido pai. E ao mesmo tempo que todos os problemas acontecidos desmotivavam, Lamento achava motivação nas brechas que Revolta encontrava, pois se há brechas em um sistema, o mesmo não é perfeito, e após assumir a corporação, Lamento teria poder de voto sobre leis como essa, e poderia fazer com que fossem justas e sem brechas. A verdade é que o jovem verme não sabia que o sistema era sim perfeito. Não só perfeito, como extremamente bem elaborado.
Além de todo o trabalho com os documentos, existiam alguns problemas da corporação que Lamento já teria que decidir, como próximo na linha de comando. Muitos desses problemas eram banais, como suprimentos acabando e máquinas a serem compradas. Mas alguns desses problemas incomodavam profundamente Lamento. Veja bem, nessa corporação, existem vários ramos de negócios, e cada negócio tem milhares de linhas de produção. Cada uma dessas linhas de produção tem também uma inteligência artificial poderosa que é encarregada de controlar o fluxo de saída dos produtos, para que nenhum estoque encha demais ao ponto de produtos serem jogados fora ou fique vazio demais para que não gere o máximo de lucro possível. Mas as vezes ocorrem problemas onde milhares de créditos são jogados fora por culpa de tal inteligência artificial, e quando Lamento tenta descobrir o que há de errado no código, ele descobre não ter todo acesso possível ao mesmo, tendo que deixar o problema de lado. Há também o problema de funcionários mortos, já que infelizmente vermes não podem esperar para morrer, trazendo problemas ao lucro da companhia. Sendo assim, existem milhares de próteses em estoque para cada parte do corpo de um verme, até mesmo dos órgãos mais complicados como o cérebro. Claro que essas próteses nunca são boas como o membro perdido, apenas funcionando o suficiente para que o verme não morra e continue gerando o mesmo lucro que geraria antes para a corporação, mesmo que a prótese gere imensa dor. Claro que isso não é problema já que sentir dor não é algo bom para os negócios, e um dos requisitos de um trabalhador da corporação é que parte de seu cérebro seja retirada para que nem dor, nem ódio e nem extrema alegria possam ser sentidas pelo mesmo. Lamento não gostava de nada disso, mas sabia que estava errado nesse quesito.
Lamento se tornava cada vez mais odioso dos sistemas que Afronesia criou, já que eram falhos segundo ele. Ele começou assim a perceber que talvez pudesse fazer um trabalho melhor que seu pai, e isso lhe deu motivação para continuar.
O dia de se apresentar novamente em frente à corte finalmente chegou, e Lamento estava pronto e com ódio em seu coração. Ele preparou todos os servos que o acompanhariam, e meditou por horas com a ajuda de drogas psicoativas. Finalmente ele receberia a importância de seu pai.
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Sociedade de Vermes
Science FictionConto pessimista de uma sociedade de vermes. Não existem deuses ou forças criacionistas, o caos agindo no infinito tempo gerou algo, e desse algo algum dia saíram vermes.