Capítulo 3

4.6K 527 7
                                    

 Emilie


Outra sirene e agora falta pouco para que chegue a minha vez. Estou vestindo as roupas típicas da minha cultura brasileira, mais especificamente da região que minha família por parte da minha mãe teve origem. Quando minha avó nasceu ela não foi para a escola, a mãe dela ensinou tudo o que ela sabia.

Minha bisavó era uma professora recém formada, quando os elfos se tornaram um problema, ela não chegou a dar aulas de verdade. Ela foi uma das pessoas que sofreu muitos apagões e quando estava bem, ensinava os filhos e as crianças da região sobre todas as matérias básicas, com foco na sua paixão pela história.

Minha avó ensinou a minha mãe e depois me ensinou, enquanto minha mãe trabalhava na linha de frente como enfermeira. Claro que ela também não teve estudo para isso, minha mãe aprendeu tudo o que sabia com meu pai. Ele consequentemente aprendeu a ser médico com o próprio pai, as faculdades não eram seguras, as escolas também não. Todo o conhecimento necessário era passado de pai para filho e com sorte, um vizinho aprenderia também se pagasse por isso.

Muitas famílias conseguiram manter uma vida com certo luxo, enquanto aqueles que passavam por dificuldade antes só se afundaram ainda mais, a maioria se rendeu ao serviço militar para garantir o pão nas mesas de suas famílias.

Em resumo, eu tive uma vida boa e tranquila, até meu pai e minha mãe morrerem. Eu acabei sozinha com meu tio e primos, todos sanguessugas que querem usar de uma brecha na nova legislação para tirarem tudo o que meus pais deixaram para mim.

Torço meus dedos juntos, para evitar apertar a roupa e amassar a vestimenta típica. Me esforço para relaxar e lembrar das histórias que minha avó contava. Maria Bonita e Lampião eram os meus favoritos de ouvir, enquanto estávamos escondidas aprendendo a bloquear a magia que poderia nos influenciar. Ela fazia questão de me ensinar tudo o que sabia e aprendeu, hoje eu poderia ganhar a vida dando aulas e até como enfermeira, aprendi o suficiente com meus pais.

Mas ainda não bastaria, eu ainda estaria perto demais do restante da minha família. Eles ainda estariam perto o suficiente para tentarem me extorquir e arrancar até o último centavo do que me resta.

Outra sirene e eu puxo respirações profundas. Mantenho o foco em pensar nas histórias que minha avó contava. Não eram histórias bonitas, já que eles eram cruéis em muito do que faziam, mas me fascinava o fato deles viverem segundo suas regras. Eu nunca soube o que seria viver assim livremente e de acordo com o que vai acontecer hoje, eu nunca vou saber.

A sirene continua tocando até que enfim, chega a minha vez. Antes de começar a andar, aliso minha roupa rapidamente e ajusto meu chapéu. Boa parte das pessoas que vão assistir, nunca vão saber o contexto da história da minha roupa. Também não vão perceber que escolhi usar justamente a versão masculina, da roupa de um vaqueiro. Com todo o couro próprio para montaria e para aguentar o calor do nordeste brasileiro.

Não é possível ver minhas curvas, não é possível ver muito da minha pele morena e meu cabelo cacheado está devidamente preso, com duas tranças compridas que chegam até minha barriga. Não estou usando maquiagem e não estou tentando ficar bonita como algumas mulheres fizeram. Eu só quero parecer eu mesma. Eu quero pelo menos ter a minha identidade preservada no meio de tudo isso.

A fila anda, a encenação vai começar. Eu só preciso andar e esperar que todos me vejam, que as câmeras capturem todos os ângulos de como estamos. Que todos vejam que estamos bem e felizes, mesmo que outras tantas mulheres já tenham feito exatamente a mesma coisa. Mesmo que já tenha ficado cansativo para todos que estão esperando sua vez, ainda precisamos manter o ar de quem está feliz, por ter a chance de ser escolhida.

Não que os orcs se importem com nossa aparência ou toda essa pompa. Eles só querem receber seu pagamento parcelado. Hoje nós somos o tributo pela benevolência deles, daqui a alguns meses mais noivas e noivos serão trazidos.

Além disso, as famílias daqueles que se tornarem tributos serão recompensados, desde que as noivas estejam dispostas a fazer parte disso, por vontade própria. A família será cuidada pelo orc que escolher o parente deles e cada governo, também irá recompensar inicialmente com uma bela quantia em dinheiro ou com propriedades.

Só essa quantia seria suficiente para tirar a família da miséria ou ajudar a pagar as contas, agora que a economia está se reerguendo e sendo reestruturada para que se ajuste à economia dos orcs. Espero ao menos que o meu noivo orc não queira entregar minha herança ao meu tio, isso me deixaria devastada. Meus pais se dedicaram muito a essa ONG, porque sabiam que eu trabalharia nela e não acabaria sem nada caso acontecesse alguma coisa com eles, já que eu herdei da minha avó a casa da família dela e uma pequena herança que é suficiente para manter a casa.

A casa eu nunca poderia vender, ela é considerada patrimônio histórico pela participação da família da minha avó em momentos que hoje são considerados determinantes para nossa história. Se outros assumirem, seria como perder a essência desse lugar. Não eu nunca poderia vender a casa, é a coisa mais egoísta que eu poderia fazer, já que vende-lá poderia resolver meus problemas com meu tio, ainda assim não tenho coragem de fazer isso. Prefiro me vender como noiva para um orc e tentar conversar com ele para resolver esse problema de forma amigável.

Se meu tio assumir a responsabilidade pelo meu patrimônio junto com meus primos, a ONG que meus pais criaram juntos vai ser fechada mais rápido do que dá pra imaginar e as famílias que ajudamos vão ficar sem essa ajuda.

Tudo o que eu preciso é fazer um acordo com meu tio, se eu for escolhida hoje eu vou receber o dinheiro do governo. Espero que essa quantia seja suficiente para convencê-lo de assinar um contrato de que abre mão da responsabilidade como tutor dos meus bens e que essa tutela será assumida pelo meu novo noivo orc.

Meus passos são curtos e contidos, o nervosismo de entrar em uma sala muito iluminada com a sensação de estar sendo observada é quase sufocante. Puxo uma última respiração profunda e coloco minha melhor expressão no rosto. Sem sorriso porque não gosto dele, apenas ergo minha cabeça e mantenho uma postura altiva de alguém que se sente bem e digna de estar ali.

Posso parecer metida de alguma forma, mas essa é a melhor cena que eu posso fazer. Passei horas diante do espelho treinando expressões, para garantir que seria escolhida hoje sem parecer uma lunática feliz demais para esse arranjo.

Não quero iludir ninguém, não quero parecer falsa diante de tudo isso, quero parecer eu mesma e é assim que quero ser escolhida. Para manter ao menos esse fio da minha dignidade.

A noiva humana do ORC vaidoso - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora