PRÓLOGO
A comida realmente parece deliciosa. Os legumes foram cortados de forma simétrica. Um jantar bonito, de fato, mas estou com pouca fome. Ao lado do prato está um grande copo cheio daqueles sucos embutidos em caixa de papelão metalizada: pêssego - a julgar pela cor. Repudio. Não me agrada este tipo de bebida.
Dou graças aos céus porque hoje é domingo e pelo menos minha filha Débora variou o cardápio. Ela mal para em casa. Comemos besteiras durante toda a semana: pizza, macarrão instantâneo, sopão enlatado e uma série de gororobas que prejudicam a saúde.
Sei que a idade não permite tais alimentos, mas como hoje vivemos em uma sociedade fast food, aonde tudo é consumido na mesma velocidade de um simples piscar - como diz Déb, não sobra tempo pra nada, acabamos por vítimas do convencional comodismo. Sei também que o jantar foi preparado com muito carinho, afinal hoje é o único dia de folga dela nesta quinzena. O jeito é comer simulando a aprovação com o rosto. Não falo nada, consigo diferenciar o som do mastigar de todos. O clima geralmente é tenso, mas hoje está de parabéns.
Assentada ao meu lado está a adorável Alice, minha netinha. A criatividade que surge das invenções dela me encanta. O pediatra da família nos disse que sua inteligência está muito desenvolvida para uma garotinha de apenas cinco anos - nada que seja novidade para mim.
Ela é um dos poucos motivos que me fazem sorrir neste casarão gelado.
Em frente à Alice está Brian, meu outro neto. Este tem dezesseis anos - a idade das sombras. É meu neto, eu sei, mas às vezes o considero um pé no saco.
O playboy não fala comigo. Passa o dia trancafiado em um quarto vendo pornografia na internet e jogando videogame... Um dia peguei o safado se masturbando frente ao monitor, apreciando seus primeiros pentelhos. Foi cômico ver a cara do coitado quando o surpreendi.
Nos poucos diálogos que temos o chamo de "bananinha", ele retruca sempre me apelidando de "bode velho". Nem me importo. Já me acostumei. Se fosse à minha época, ah... Ele saberia como respeitar os mais velhos...
Que vontade de dar um sapeca-iaiá nestes lombos magros. Só porque tem estatura, já acredita ser um homem. Homem qual.
Minha filha come calada, enérgica, frente a mim. Sempre fico surpreso com a velocidade que ela leva o talher à boca. Acredito que tal pressa tenha se dado pelo fato da coitada se dedicar tanto àquele escritório.
Mal se alimenta direito. Mesmo assim anos de estudos, estágios e bicosvaleram à pena. Hoje Déb é considerada como a maior engenheira da cidade do Rio de Janeiro, segundo a revista Tops Rio. A coluna fala a respeito de mulheres solteiras que venceram na vida. Um orgulho para mim, de fato.
Foi custoso para este velho criar essa menina... Labutei de sol a sol, como diz Sérgio Reis, eu e a mãe dela... É! O tempo não perdoa ninguém. Rico ou pobre, todos um dia hão de encarar a velhice, isto é, se tiverem sorte, porque com esta violência...
Hoje estou velho, reconheço e me identifico com essa canção do Sérgio. Só não me recordo o nome. Apenas Alice me suporta e sinceramente não sei como Déb ainda insiste em viver com um "bode velho" inútil feito eu. Sei que ela não está contente com minha presença aqui. Nunca me senti bem vindo, mesmo assim a amo.
Fico meditando nos primeiros anos de escola da Débora. Como é bom se recordar das primeiras provas dela, do dente que ficou na maçã...
Meus pensamentos são interrompidos pelo cantarolar da minha neta, que sussurra feito uma cigarra uma típica melodia infantil, enquanto espeta alguns palitos de dente nos vegetais. Neste momento minha filha finalmente abre a boca para falar.
- Quantas vezes eu vou repetir para não brincar com a comida, Alice? - diz Déb, em tom bastante ameaçador. Prefiro me calar dessa vez e apenas observar. Sábios são os que mais ouvem e menos falam. Não que eu esteja dizendo que sou sábio.
- Este é o Senhor Batatas, mamãe! - responde a garota felizmente, sem se importar com o autoritarismo da mãe. Contenho-me apenas com um suspirar esboçado por um discreto sorriso no canto esquerdo dos lábios. Alice sorri de volta; sua janelinha entre os dentes de leite sempre me derrete. Bem, e como de costume, mais uma vez, a pequena bonequinha quebra a atmosfera pesada da suntuosa sala de jantar.
- Seu amigo é muito bonito, Senhora Alice. Além de bonito ele é muito saudável, tem vitaminas, potássio, faz você ficar forte e muito mais...
- Xi... Lá vem o bode velho com mais uma das suas. Sa-co! - murmura o bananinha.
- Quantas vezes eu vou ter que dizer para não falar assim com o seu avô, Brian? - diz Déb, enrubescida feito o pimentão do prato, após ter batido o talher com atitude na mesa.
- Quantas vezes, quantas vezes... E quantas vezes você vai deixar de ser careta e posar de boa mãe pra Deus e o mundo ver? Tipo assim: todo mundo sabe que na verdade você não passa de uma coroa mal amada, mal humorada que posa de moralista porque se preocupa mais com dinheiro do que com a própria família. Fala sério, nem meu pai te suportou! - respinga o moleque com lágrima na voz. Caramba! Onde esse menino achou toda essa munição? Será que foi na internet, talvez? Não fazia ideia do quanto o bananinha é carente. Fico estarrecido.
- Débora, calma. - digo, tentando apaziguar a situação.
Se bem que pedir calma para alguém nessas horas é semelhante a segurar um cão bravo pelas orelhas... É a única coisa que me surge à mente.
O Menino dá de ombros, ignorando o mundo e como sempre faz, larga o prato se tranca no quarto.
- Calma o caramba, pai! Eu segurei essa criatura na barriga por nove meses. Limpei, troquei fralda suja de mer..., Criei, dou de um tudo, TUDO! Dou amor, um bom estudo, pago a natação, - acrescenta, contando com os dedos. - Dou mesada... Nenhum moleque da idade desse menino, na minha época, teve o que ele tem hoje. Dou roupa, atenção...
Nesse momento ela mesma se interrompe surpresa pelas próprias palavras e se silencia.
"Finalmente a consciência chegou para o jantar."
Também me sinto culpado agora.
O silêncio volta a sentar-se conosco até o fim da refeição. Nem eu e Alice comemos mais; para a sorte do Senhor Batatas
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Revelações de Alice
General FictionAlberto descobre que o destino de todos ao seu redor está selado nos desenhos da sua neta Alice. Ao tomar conhecimento deste mistério, o velho é dado como louco e abandonado em um asilo. O novo morador da casa de repouso percebe, pelas pinturas, q...