Domingo: o nono desde que cheguei a este maldito lugar. Observo o grande jardim pela janela; cheio de eucaliptos gigantescos, grama aparada, estátuas de gesso, bancos alvos e mesas de concreto com tampos de granito estampados à tinta óleo pela logomarca:
LIFE
LAR PARA IDOSOS FREI EDGARD
Contemplo pessoas sorrindo: um bando de velhotes no fim da vida sendo abraçados por seus parentes enquanto outros familiares aguardam no estacionamento ao lado as tartarugas enferrujadas chegarem até o carro, arrastando malas mais feias que a própria careta pelo esforço. Francamente, dentro de mim não sei se sinto revolta, inveja ou os dois sentimentos, mas faz quase três meses e nenhuma carta, sequer.
Até agora o chato de galocha do senhor Rafael não apareceu pra encher meu saco, curiosamente estou sentindo falta. Todavia, logo me arrependo quando o avisto de longe acenando para mim feito um bocó.
Como já é tradição minha, dou de ombros, fecho janela e ignoro o mala-sem-alça.
Ao que parece, o senhor Rafael é um médico aposentado. Diariamente pela manhã bate em minha janela convidando para participar de alguma atividade recreativa do instituto, alegando ser "ótimo para minha saúde".
Ele é estressante e perturbador até na aparência: o velho é um nanico, meio asiático (acho que é japonês), veste-se com trajes orientais – cores claras próximas do branco; uma ridícula sapatilha verde-limão fluorescente e um penteado ao estilo vaca-lambeu.
Preparo para fechar as persianas e lembro que infeliz já está no meu encalço há dias.
Se ignora-lo será pior.
- Olá vizinho! Acordou com o coração melhor? Está quase na hora da corrida.
O filho da mãe ao perceber que não quero conversa, emenda.
Parece até que faz de pirraça.
- Ora vizinho, não seja tímido. O dia está lindo! Você não pode ficar aí pelo resto da vida.
As últimas palavras soam nos meus tímpanos como as unhas de um gato sobre um quadro-negro.
Tenha santa paciência! Vou estourar em 3,2...
- Olha, Rafael, acertei? Não sei se você notou, mas quero ficar EM PAZ com esta linda manhã. Quando estiver calmo eu saio, ok?
Ele declina a cabeça pensativo e levanta-a novamente com o mesmo sorriso de sempre que faz os olhos desaparecerem. Ignoro a cara de pateta dele e fecho as cortinas.
- Enfim livre! – olho para o teto aliviado, mas para o meu tormento matinal ser completo, ouço três batidas intensas na minha vidraça.
- Estarei esperando você lá, viu! Não se esqueça!
FILHO DA P... ! Será que esse homem é gay?
Ж
Para ser honesto comigo mesmo, senhor Rafael tem razão: passei os últimos 63 dias trancafiado neste quarto desde que entrei por estas portas, voluntariamente. Tenho irmãos, é claro, e ainda brigam pela herança do meu falecido pai. Então não faz sentido procurá-los.
Não quero ser obstáculo para felicidade de ninguém, nem dos meus irmãos. Apenas sofro muito por não ver meus netos. A cada domingo, junto os cacos da minha esperança e sigo para janela do meu dormitório. Dói saber que a pessoa que eu tanto amo, me quer longe. Talvez seja isso que está transformando meu sofrimento em rancor.
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Revelações de Alice
Художественная прозаAlberto descobre que o destino de todos ao seu redor está selado nos desenhos da sua neta Alice. Ao tomar conhecimento deste mistério, o velho é dado como louco e abandonado em um asilo. O novo morador da casa de repouso percebe, pelas pinturas, q...