«ANÔNIMO»

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Esse capítulo foi inspirado e adaptado de uma das histórias do livro Um Ano de Histórias da Marcia Kupstas (que é muito bom, super indico.)


Raquel encontrava-se no Museu do Ipiranga, analisando o grandioso quadro Independência ou Morte.

Cruzou os braços indignada.

-[...] Não foi desse jeito que aconteceu, Sacanagem.

Uma voz aveludada veio por trás:

- Pode não ser real, mas é bonito.

- Aaaaaai! - Raquel gritou, pulou e se adiantou, ao mesmo tempo. Com isso, acabou nos braços do moço alto que dissera aquilo.

- Que... que... que...

- Calma. Você tá tremendo. Sossegue...

Ele a apertou com mais força. E foi tudo junto: medo, vertigem, vergonha. Quando Raquel abriu os olhos, estava acomodada numa cadeira, do outro lado da sala. O rosto do moreno rapaz muito próximo,e o imenso quadro formando moldura, às suas costas.

- Você está bem?

- Não sei. E-eu - Sentiu-o tão próximo, encabulou.

Respirou fundo e o cheiro dele veio com tudo, uma mistura de incenso, menta, canela. Era bom. E olhar para ele também era bom.

O rapaz era moreno, a pele muito lisa, sem barba nem bigode. O cabelo escuro estava preso em rabo-de-cavalo. Nariz e lábios grossos, jeito mestiçado e os olhos... impressionantes. Amendoados e brilhantes como pérolas negras, as íris tão escuras que as meninas-dos-olhos mal se distinguiam naquele negrume todo.

- Você está tão pálida... parece que viu um fantasma!

Ela gemeu. E a todo custo se afastou dele. O rapaz não tentou prendê-la, virou para a tela e abriu os braços.

[...]

Raquel se sentia tão cansada... não queria discutir. Queria apenas ficar quieta, sentada. Fechou os olhos. A voz do rapaz a seguiu sob as pálpebras, insinuante em seus ouvidos, poderosa e invasiva.

- Do que tem medo? Das suas emoções? Você não vai ficar birra ou desinteressante de demonstrar emoções. Apenas vai ser humana.

- Agora eu não sou humana? Só faltava essa!

Se ela o achava atraente, antes, agora a irritava. E então, ele pareceu ler o que ela pensava:

- Você não gosta de ficar irritada. E você se irrita com o que não se explica. Há lugares que podem despertar emoções, o melhor de nós. Em parque, uma praia, um museu. As pessoas vêm até aqui atrás de emoções simples. A área em volta do museu é agradável, o prédio é bonito. Veja as coisas boas em volta de si.

- Ver coisas boas? O quê?

- Eu estou vendo algo muito bonito. - Falou e esperou.

Ela não respondeu. Ele continuou:

- O que você diria agora, se eu falasse que você é bonita?

Os lábios de Raquel de abriram em um sorriso mole:

- Mentira. Não sou bonita. E quando a gente não é bonita...

- ... tem que ser inteligente. - Completou o rapaz. - Não é isso que você diz sempre? De que, quando uma garota não é bonita, ela tem que ser inteligente? De onde tirou isso? Você é culta, inteligente. E é muito interessante, Raquel.

"Raquel? Ele falou Raquel? Mas não disse meu nome... eu só sentei aqui, porque estou com fome e cansada e..."

O rosto dele ficou mais próximo. Tão próximo que Raquel só via a boca, crescendo ao se aproximar, tão de perto que as minúsculas ranhuras na pele dos lábios se destacavam; e os lábios deviam ser macios, mornos.

Fechou os olhos. A voz do rapaz prosseguiu sob suas pálpebras, voz e imagens se misturando num jogo de sensações sobre sensações. Ele dizia:

- Você é bonita, Raquel, e pode ficar triste, ou comovida. Ou ser frágil ou sentir emoções simples. Andar no parque, sentir o vento no rosto, o banho de mar, carícia na pele, desejos... suaves desejos...

E ela sentia. As palavras viraram imediatamente sensações. Raquel num segundo pôde ter a imagem da praia, do vento... o cheiro de mato lavado, o contato dos pés descalços na grama e havia a boca... a boca do rapaz e seu sabor era úmido... e o som, ouviu o som de sinos, ou de flautas?... Um barulho constante e estridente, que veio e veio mais e insistiu e depois foram as luzes, que diminuíram e aumentaram...

Quando Raquel abriu os olhos, demorou a entender onde estava. Afinal, o último som, ainda no seu cérebro, disparou junto com o alarme do museu, indicando a hora de fechar. E sua vista demorou a se acostumar com a penumbra, o quadro Independência ou Morte, visto mal-e-mal, a iluminação do fim de tarde, vinda de fora, filtrada pelas janelas. E súbito, a luz artificial acendeu de novo, piscou, apagou, sinalizou o fim do expediente.

- Que horas são? Mas o quê...? - Conferiu as horas e notou que passavam quinze minutos das cinco.

Não fazia a menor ideia do que realmente poderia ter acontecido naquela última meia hora!

Raquel se levantou, como tinha parado naquele banco? Teria dormido?

Suspirou fundo, convencendo a si mesma que fora apenas um sonho. Tentou não se lembrar do arrepio... do cheiro daquele rapaz, e principalmente, tentou não se lembrar daquilo: de como foi à sala das armas e conferiu as fotografias. E como o moço que conversara com ela podia ser tão semelhante a um dos retratos, um soldado anônimo de uma campanha da Guerra do Paraguai, alguém que estaria morto há mais de século e meio, mas que havia falado com ela, naquela tarde, lá no museu.

No caminho para casa, ainda confusa com tudo, Raquel sentiu um peso na jaqueta que usava, colocou a mão no bolso e sentiu algo gélido, retirou o objeto e suspirou em surpresa, em suas mãos estava uma medalha de bronze da Guerra do Paraguai muito semelhante às que vira no Museu.

Como aquilo era possível se havia sido apenas um sonho?

[...]

E mesmo se convencendo que havia sonhado, Raquel passou a voltar ao museu, na esperança de um dia ver o seu Soldado Anônimo.

Eu queria ter postado esse capítulo dia 7 de setembro mas houve complicações (falta de criatividade).

Me digam o que vocês acharam desse capitulo.

Um beijo.

Nos vemos nos seus sonhos.

Uma Confusão de Memórias IncertasOnde histórias criam vida. Descubra agora