O ceifador e o coração partido

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No quarto haviam muitos pedaços espalhados pelo chão, a bagunça parecia sem fim, e o anfitrião não me recebera. Entrei sem que ele soubesse. Jazia na cama, com sua dor imensurável. Perguntei-lhe se pretendia arrumar aquela bagunça, pois como eu, outros viriam visitar-lhe. Revirou-se de um lado para o outro. Sua feição cadavérica e sua pele tingida de sol assustaram-me. Não pude acreditar que já havia chegado nesse estado.

— Não. — ele me disse com voz moribunda —  Estou pronto para morrer — completou em seguida.

Continuei ali, observando-o de perto. Por um longo período ele nada fez, nada disse. Seus olhos vitreos nada viam apesar de abertos.

Quebrar o silêncio gritante era necessário, mas nada me ocorria. Comecei a fazer-lhe perguntas, buscar a origem de tão lúgubre atmosfera.

— Por que aceitasse a morte assim tão prematura?

Seus olhos mexeram-se e miraram em mim, continuei parado. Suas pupilas dilatadas pareciam não me ver, talvez estivesse embriagado com doses extremas de agonia diluídas em seu âmago.

—Eu só quero ser livre — ele disse olhando-me a alma.

— Livre? — retruquei imediatamente — Livre do que? — completei.

— Olhe para mim, reflexo! Você vê um ser vivo?

Suas feições mudaram de repente, levantou-se e sentado na cama continuou esbravejar:

— Veja reflexo! —  ele dizia — Veja! eu já morri a muito tempo. Quantos já me tomaram como cadáver antes mesmo da minha morte? Você pode dizer? Alguns vieram se despedir outros simplesmente partiram, só me restou a escuridão dessas paredes e os pedaços do meu coração espalhados pelo chão.

Fez um pausa deitando-se de novo.

— Por que insiste em prolongar minha vida? Vá embora você também, deixe-me morrer.

Terminou com tom de voz cada vez mais baixo. Por um instante senti minha traquéia vedar-se. Minha alma nutrida de sensibilidade estremeceu diante das alegações do rapaz que esperava a carruagem do ceifeiro.

— Você acha que está sozinho, criança? — eu disse — Mas você tem a mim.

Ele olhou-me com piedade e disse:

— Você é só uma parte de mim, que não tiveram a oportunidade de matar. Apenas uma fagulha do que restou da minha vida. Se tiverem a chance vão matar-lhe como fizeram comigo. Agora vá-te, reflexo. Vá ter com o diabo suas questões filosóficas. Chegarei em breve.

Virou-se para o lado, de forma que eu não mais podia ver seu rosto.

Agachei-me naquele quarto pútrido, estiquei a camisa e comecei recolher os pedaços espalhados. Eram tantos, Deus! tudo se encaixava perfeitamente. Enquanto eu andava no cômodo, ele nada fazia, nada dizia. Não se importava, sabia que naquele estado a morte chegaria em breve. "Liberdade"  ele dizia. Será que a morte o libertará das dores?

No chão empoeirado não mais encontrava-se nenhum caco daquele coração partido. Recolhi todos para consertar e devolver-lhe o palpitar. Em uma escrivaninha abandonada no canto do quarto —  ele costumava sonhar e viajar com as narrativas fantásticas de Poe —, espalhei o quebra-cabeças melancólico e comecei unir-lhe as peças. Em um pequeno fragmento reluzia uma memória da infância. Três crianças brincavam na chuva felizes. Pulavam alegremente e corriam em círculos umas atrás das outras. Pega-pega. Está com você!  gritavam quando conseguiam se alcançar. Irmãos, amigos, amores. Muitas memórias naqueles fragmentos. Muitos pesares, dores, lágrimas. É evidente para mim que a morte faz parte da vida, mas para essa criança que reza ao ceifeiro, a morte ronda suas paixões. Ela não veio buscar-lhe a carne, mas seus amores. Ceifou toda sua alegria e agora me assiste com um sorriso sádico por baixo do capuz. Um jovem que implora pela morte da carne, pois a foice do destino imutável já matou-lhe a alma restando apenas o desejo de perecer.

O livro do Ceifador Onde histórias criam vida. Descubra agora